terça-feira, 8 de setembro de 2015

Sobre apagamento de lésbicas



O assunto tá batido, mas vendo postagens em grupos de lésbicas (tanto em grupos virtuais, como presenciais), em sua maioria não feministas, sinto a necessidade de escrever novamente. Gostaria de nem sentir necessidade de escrever sobre isso, mas considero de suma importância para a nossa visibilidade e resistência enquanto lesbianas. Senta que lá vem textão (acho que poucas vão ler, mas vai que né):

A última pesquisa recente relacionada à sexualidade, mostra que mulheres estão cada vez menos se assumindo lésbicas. Acredito que seja também, por entenderem que é "apenas um rótulo" ou "se limitando" por se relacionarem apenas om mulheres (argumentos que são comumentes usados em espaços para mulheres lésbicas/bissexuais), pelas tentativas constantes de apagamento e marginalização patriarcais, com um apoio do liberalismo individualista colocado como revolucionário pela esquerda pós moderna - teoria queer e transativismo - que já se tornou a bíblia do mundo LGBT, onde a categoria análise sobre gênero, que considera gênero enquanto "auto identificação" é soberana e inquestionável. E as lésbicas, que ousam questionar essa teoria que corrobora com pedofilia, zoofilia, cultura de estupro e apagamento lesbiano, ou simplesmente ousam dizer que não são obrigadas e não querem se relacionar com mulheres trans por causa do falo, são acusadas de transfobia - que tem sido tratada como prioridade em espaços LGBT e também de espaços feministas - considero isso como uma forma de minar espaços auto gestionados de mulheres e de lésbicas em nome da "diversidade".
Algumas considerações sobre isso:

1) Mulheres não são produtos para serem "rotuladas". Lesbianidade não é um rótulo, é uma categoria política que precisa existir e ser nomeada para que possamos nomear nossas vivências, que são específicas, assim como nossas opressões (lesbofobia). Assim como a categoria mulher ainda existe porque precisamos nos nomear assim para visibilizarmos violências e vivências específicas que nos acometem. Mas nós existimos, resistimos e gritaremos que somos lesbianas, fanchas, caminhoneiras, sapatão. LÉS BI CAS.

2) Não existe limitação nenhuma em se relacionar apenas com mulheres. Essa ideia de que seria uma limitação, é derivada da heterossexualidade enquanto regime político. É notório que nossa lesbianidade, nosso sexo é visto como "limitador" pela sociedade falocêntrica e patriarcal porque não tem envolvimento de falo. O que seria de uma mulher sem um pinto, não é mesmo? (só para deixar evidente que é uma ironia, vai que, né).

3) Parece óbvio ter que dizer isso, mas: nenhuma mulher deve ser obrigada à nada e nem deve sexo à ninguém. Nenhuma mulher deve se relaciona com pessoas do sexo masculino caso não queira, mesmo que estas pessoas se "auto identifiquem" como mulheres. Nenhuma mulher deve ser coagida, ser acusada de transfobia, e "desconstruir preconceito contra falo" (como se isso fosse possível, já que a sociedade é falocêntrica, e o pênis é idolatrado e visto como a cura para as mulheres, inclusive pelos cientistas, pela psicanálise; diferentemente da vagina, que é vista como algo inferior, nojento, mal cheiroso) numa tentativa absurda de justificarem à coerção do sexo hetero para lésbicas em forma de "desconstrução de preconceitos".

4) Existem categorias de análise diferentes sobre gênero.

- Existe uma visão individualista, que entende gênero como algo passível de auto-identificação. Essa categoria de análise, é derivada de uma política liberalista, que entende que a subjetividade do indivíduo está acima de construções sociais, que são coletivas e não são escolhas - de fato, todo indivíduo é único e tem suas subjetividades, mas até nossas subjetividades são moldadas pelo meio em que vivemos.
Essa categoria de análise entende gênero enquanto uma "pluralidade" e algo que deve ser celebrado, reificado, e que cada indivíduo poderia escolher à qual gênero "se identifica", de acordo com a maneira que "se sente". Se uma pessoa foi designada homem ao nascimento, foi socializado como homem, mas "se sente" uma mulher, esse indivíduo é uma mulher (trans). Se uma pessoa foi designada como mulher ao nascimento, socializada como mulher, mas "se sente" um homem, é um homem (trans). Assim como acreditam ser possível que qualquer indivíduo que se identifica com nenhum gênero, ou com todos os gêneros, ou que flui entre os gêneros.
E isto seria um fato inquestionável, já que a auto-identificação é soberana.

- Existe uma outra categoria de análise, materialista, que entende gênero enquanto uma hierarquia, criado como ferramenta para naturalizar a exploração das mulheres. Essa categoria de análise entende que o gênero não é uma auto-identificação, mas uma imposição que serve aos interesses masculinos: crianças do sexo feminino, desde que que descobrem sua vagina, tem sua existência social definida por isso. Nascem e nos furam as orelhas, mutilam o clitóris, são criadas como inferiores, frágeis, e a feminilidade (outra ferramenta criada para interesse masculino para a manutenção do patriarcado) se mostra presente desde a tenra socialização, assim como a heterossexualidade enquanto regime político e a maternidade compulsória. Já a socialização masculina, é bem diferente do citado acima.
Tudo isso nos torna mulheres perante a sociedade, assim como é intrínseca a construção do que é "ser mulher" baseado no "ser homem", já que eles são os agentes, e nós, os objetos. Já que não existe o "ser mulher" sem um homem (mulheres lésbicas, especialmente as despidas de feminilidade, escutam com certa frequência homens as ameaçando de estupro corretivo para se "tornarem mulheres"). Um ponto bem importante desta categoria, é entender mulheres enquanto uma classe sexual - ou seja, temos algumas vivências semelhantes devido à nossa leitura social de mulheres, devido à nossa vagina.

Um ponto extremamente pessoal que quero colocar aqui, é que entendo a maternidade como o grau mais alto de exploração das mulheres apenas por serem mulheres, como forma de "cumprir seu papel social". É celebrada nas propagandas de dia das mães, falsamente recompensada pelo "amor incondicional" pelos filhos, mas é exploração, sofrimento, anulação para muitas mulheres (mesmo as que fazem questão de manter a figura de mãe feliz, perfeita e que não reclama de nada), e que ainda enfrentam o cargo da criação dos filhos sozinhas e são culpabilizadas pelo que quer que façam.
Por fim, essa análise não entende gênero enquanto um sentimento, ou algo passível de "auto identificação", mas uma ferramenta para naturalizar a exploração sexual, reprodutiva e laboral das mulheres, que deve ser abolida, e não reificada. É entender que nenhuma mulher escolheu ser mulher, porque isso seria dizer que nos identificamos com a nossa própria submissão e exploração.
Isso significa que, se não existir gênero, não existirão hierarquias entre os sexos. Homens e mulheres são diferentes, mas nossas diferenças biológicas não justificam a ritualização da nossa submissão, nem sermos tratadas como inferiores apenas por termos vagina.

*Obviamente, existem outros sistemas de exploração que andam concomitantes ao patriarcado, recortes de raça e classe são extremamente necessários nesta análise, perpassando pela socialização, mas aqui me dedicarei exclusivamente à esse ponto, até porque não tenho carga teórica o suficiente para isso e muito menos vivência.

5) Depois de entender estas duas categorias distintas sobre gênero, é de suma importância nos questionarmos: o que então é ser mulher? O que é ser lésbica?
O que é ser mulher? É a roupa que visto? É a saia, o vestido? É o salto alto, a maquiagem? Eu me sinto mulher? O que me faz "me sentir mulher"? Sou mulher porque me "sinto assim" ou porque me "tornaram mulher" porque nasci com uma vagina de acordo com a leitura social patriarcal?
Ser lésbica passa por apenas a auto-identificação enquanto lésbica, ou ter vivência enquanto lésbica? Qual é a história da comunidade lésbica? O que significa ser lésbica em uma sociedade falocêntrica e patriarcal? O que significa amar, se relacionar afetiva e sexualmente somente com mulheres? O que significa negar o acesso masculino aos nossos corpos em uma sociedade em que nosso corpo é público enquanto somos solteiras, e privado se somos casadas com homens - mas de toda forma, de domínio masculino ? Por que é necessário enxergar nossa lesbianidade enquanto política de resistência?

Ademais, não duvido que pessoas trans realmente "se sintam" do gênero oposto, porque só nos identificamos e sentimos com aquilo que nos é apresentado. Mas isso não quer dizer que não devamos questionar se essa categoria de análise é producente para a nossa classe sexual ou não como forma de libertação das mulheres do controle masculino.

6) É extremamente violento para lésbicas despidas de feminilidade serem colocadas como "homem trans". A feminilidade é uma ferramenta de manutenção patriarcal, é uma ferramenta para nos manter frágeis, submissas, delicadas, está à serviço da supremacia masculina e do capitalismo. A feminilidade deve sim, ser desconstruída, não apenas pelas lésbicas, mas por todas as mulheres. Isso não quer dizer que você está proibida de usar maquiagem ou se depilar, mas que é importante se questionar o porquê disso, qual é a origem desse ritual e para quê/ para quem ele é mantido. Nossos gostos pessoais também são construções sociais.
Lésbicas despidas de feminilidade, que resistem à feminilidade, são resistência, e não são homens automaticamente porque recusam a feminilidade. Essa lógica é bem patriarcal, e reificada em espaços LGBT, invadidos pelo transativismo. Reflitam sobre o quão é violento dizer para uma lésbica, que se relaciona exclusivamente com mulheres, despida de feminilidade, que ela é um homem trans por isso. Que a disforia que ela sente em relação ao seu corpo, não é fruto da misoginia patriarcal, e que é 'ok' a mutilação do seu próprio corpo "para se sentir bem". E que ao invés de desconstruirmos a misoginia e lesbofobia internalizada, devemos reificar cirurgias plásticas mutiladoras, o uso de hormônios que também beneficiam a indústria farmacêutica capitalista. E isso inclusive reifica a lógica da heterossexualidade, onde sempre tem que existir "um homem e uma mulher" numa relação. E que inclusive esses papéis sociais de "homem e de mulher" devem ser reificados em relações lésbicas (coisas como "ativa e passiva", "lady ou bofe" e políticas identitárias). Um homem trans que teve vivência lésbica, seria "homem hetero". Enquanto mulheres trans, que sempre viveram enquanto homens e que sempre se relacionaram com mulheres, são "lésbicas". O apagamento da lesbianidade é notório.

E isso vem sendo colocado de forma extremamente normalizada. Homens trans, em sua maioria que viveram a vida toda como lésbicas, são pessoas excluídas de espaços de lésbicas e bissexuais porque são "iguais homens cis" (deixando evidente que nem uso o conceito "cis" por entender culpabilizador, já que nem uma mulher escolheu ser mulher ou se sente mulher, nós somos obrigadas a sermos mulheres). Não são iguais. Não tiveram socialização masculina, não foram lidos enquanto homens desde a tenra infância, não são agentes da exploração masculina e da dominação dos homens sobre as mulheres.

- Mas o que tudo isso significa para as nossas vidas enquanto lésbicas, de fato? -

Qualquer pessoa tem o direito de se auto-identificar como quiser, porém, esse individualismo liberal está invadindo espaços coletivos, de auto organização e resistência, de maneira que lésbicas estão sendo coagidas à engolirem a teoria de identidade de gênero sem ao menos poderem questionar, por que são acusadas de transfobia. Que são acusadas de transfóbicas por não se relacionarem com pessoas do sexo masculino ou porque reivindicam a lesbianidade enquanto uma resistência ao pinto, portanto, não existiriam "mulheres trans lésbicas".

Fica nítido que o trabalho do patriarcado, aliado ao liberalismo, em nos apagar à todo custo está sendo cumprido com sucesso, apesar de grupos marginalizados que insistem em ser resistentes, que enxergam sua lesbianidade de maneira política, e também à todas as lésbicas que resistem, mesmo sem politização nenhuma sobre sua sexualidade - a existência enquanto lésbica já é uma própria resistência.
Nós, lésbicas, lesbianas, sapatas, fanchas, nos nomeamos assim e não deixaremos de existir. As políticas neoliberalistas, inclusive sobre a categoria de análise sobre gênero e sobre lesbianidade devem ser combatidas enquanto resistência.

Mana, você tem todo o direito de questionar teoria de identidade de gênero e tem todo direito de discordar. Se você é silenciada em qualquer espaço que seja ao fazer estes questionamentos, é porque tem alguma coisa errada. Estude, leia, converse com outras lésbicas, em outros meios, menos hostis à sua existência e a sua sexualidade. Você não está sozinha.
E você tem todo o direito do mundo de se recusar se relacionar sexualmente e afetivamente com mulheres trans sem ser acusada de transfobia.
Você tem todo o direito de reivindicar sua lesbianidade enquanto xoxota com xoxota, cola velcro. Tem todo o direito de retomar a história da comunidade lésbica, de lembrar que existimos e resistimos ao falocentrismo.
Um beijo pras sapatão.

Por Andressa Stefano

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