Um
breve ensaio sobre bissexualidade, heterossexualidade compulsória e bifobia: um
estudo além do desejo
Há
alguns meses venho tentando conseguir escrever sobre bissexualidade e
heterossexualidade compulsória de forma que possa abrir uma discussão sadia
entre mulheres bissexuais e lésbicas, coisa que não tem ocorrido. Pretendo aqui
abordar tanto a bissexualidade masculina quanto a feminina para que possamos
abrir discussões acerca disso.
Relembrando
sempre que meu alvo é o sistema patriarcal e a forma como domina mulheres e sua
sexualidade.
Mas
afinal, de onde surgiu a bissexualidade?
Meu
primeiro ponto é levantar de onde surgiu a bissexualidade. Lendo textos de
antropologia e também de identidade bissexual (estes sob o viés da teoria
queer) todos entram em consenso que a bissexualidade é algo novo, falou-se em
bissexualidade primeiramente no século XIX, quando se designava hermafroditas
como bissexuais (dois sexos), depois disso, já no século XX passou-se a usar o
termo para pessoas que viessem a se relacionar tanto com pessoas heterossexuais
quanto homossexuais, assim nascia o uso do termo como o conhecemos hoje. Apesar
de o termo ter sido apenas inventado no século XIX sabe-se que na Grécia Antiga,
em Roma, no Japão e em algumas tribos indígenas a bissexualidade masculina era
estimulada.
Na
Grécia havia duas formas que a bissexualidade masculina podia ser encarada: em
Esparta a bissexualidade era sinal de honra entre os guerreiros, na ideologia
de guerra espartana um homem daria tudo de si na guerra se seu amante estivesse
ao seu lado e assim se protegeriam até a morte. As mulheres serviam apenas para
procriação e para servirem seus senhores. Já em Atenas, berço dos pensadores, a
bissexualidade masculina era estimulada para que homens pudessem passar valores
educacionais e morais para os jovens de sua época. O relacionamento entre eles
era de mestre/aprendiz e sempre havia um relacionamento amoroso entre estes
homens, isso também era honroso e estimulado e mais uma vez mulheres apenas
serviam para procriação e para prestar serviços aos homens.
Em
Roma a bissexualidade também era vista como sinal de honra e poder para os
homens. Eles tinham total liberdade de relacionarem-se entre si, com mulheres e
escravos, desde que ainda permanecessem com sua masculinidade intacta, ou seja,
desde que eles fossem os penetradores, desde que eles fossem os dominadores, os
violentadores.
No
Japão, os Samurais usavam o mesmo tipo de ideologia dos atenienses: os mestres
passavam seu conhecimento aos mais jovens e não raramente se envolviam sexual e
amorosamente com estes, mas, diferentemente dos espartanos, essa relação não
era levada ao campo de batalha. Os
japoneses acreditavam que era necessário que os homens tivessem equilíbrio
entre Yin (feminino, submisso) e Yang (masculino, dominador) e por isso as
relações eram estimuladas.
Em
algumas aldeias indígenas para que o Xamã fosse mais ligado às divindades era
necessário que ele se relacionasse com os dois sexos, pois acreditava-se que
isso traria equilíbrio espiritual ao Xamã.
Então,
eu poderia dizer que na idade antiga,
antes das religiões monoteístas dominarem o cenário, a relação entre homens
sempre foi vista como honrosa, sempre foi vista como algo a dar equilíbrio e
como amor e as relações com mulheres serviriam apenas e com único intuito de
procriação e servidão ao homem. Eu ainda me arrisco a dizer que nada mudou
de lá para cá, a não ser que as religiões monoteístas e o capitalismo colocaram
um fim nas relações poligâmicas entre homens com o único propósito de dar
legitimidade à posse de mulheres por homens e mesmo que seja de forma sutil,
esses sistemas ainda corroboram para que homens permaneçam se amando e mulheres
sejam apenas suas serviçais sexuais e
domésticas.
Mas
e as mulheres bissexuais, onde estariam nesse contexto? Bom, se a relação entre
homens era estimulada, a relação entre mulheres não o era, pois mulheres deveriam
estar sempre disponíveis para seus senhores e uma segunda relação não tornaria
possível tal disponibilidade. O que li me faz acreditar que mulheres mantinham
relações entre si sem que seus senhores (esposos) o soubessem, mantinham
relações de afetividade, mas nunca de exclusividade, não nas sociedades mistas
e não sem o consentimento dos homens, as relações eram sempre para o deleite
dos homens e nunca afetivas. As sociedades exclusivas de mulheres (como as
Amazonas) faziam com que as relações entre mulheres fossem sempre estimuladas,
tanto pela ideologia da guerra quanto pela ideologia da transferência do saber
e conhecimento. Nas sociedades exclusivas mulheres podiam se amar sem a
presença masculina e sem a imposição da servidão sexual e doméstica dos homens.
Em
tempos modernos, como fica a bissexualidade?
Foi exatamente o que me perguntei quando li sobre a
história recente da bissexualidade. Pensadores e estudiosos modernos dizem que
a bissexualidade seria a sexualidade ideal para todos os seres, uma vez que é
necessária a junção macho/fêmea para procriação, ou seja, todo ser humano teria
tendência a ser bissexual pela sobrevivência da espécie humana. Isso partindo
de estudos da área da psiquiatria e biologia.
Mas eu, como feminista radical me coloco a questionar tal
visão partindo do ponto que somos
estimuladas o tempo todo a nos relacionar com homens, somos estimuladas a
ama-los, a ter com eles companheirismo e ser devotas deles e os homens, ao
contrário, são estimulados a amarem uns aos outros, a venerar seus pênis e sua
força, tudo o que um homem faz o faz para outro homem. Homens amam homens e não
mulheres.
O que os homens fazem e o fazem bem, e o fazem porque o
sistema patriarcal os permite é explorar
psicológica, afetiva, física e sexualmente de mulheres. Mulheres ainda são
vistas como serviçais sexuais e domésticas dos homens. Temos que aqui nos ater
ao fato de que o poder institucional
pertence aos homens e os homens ditam as normas, aos homens é reservado o
direito de ser e ter, os homens SÃO a norma, eles são quem domina, eles são
seus próprios deuses e para, além disso, criaram um deus à sua imagem e
semelhança para que mulheres permanecessem submissas a eles por meio da força,
do medo, do terror, da submissão e da sexualidade.
Encaramos a heterossexualidade como regime politico uma
vez que ela serve para dominação de
mulheres por homens, ela serve para que mulheres permaneçam dependentes
emocional e financeiramente dos homens, faz com que mulheres acreditem que não
são seres autônomos, ao contrário, são seres que precisam de um guia, de alguém
que possa lhes proteger, possa lhes proporcionar a maternidade, possa lhes
proporcionar o preenchimento de um vazio porque apenas homens podem completar
uma mulher e uma mulher nunca será completa sem um homem; a mulher então se
torna um sub ser ou o complemento de um ser (porque o homem é um ser completo).
Não por menos que a
heterossexualidade é estimulada para mulheres, porque mulheres precisam ser
dominadas, mulheres precisam estar disponíveis para os homens, mesmo que de
modo violento, mesmo que se tornando vitima. E como a heterossexualidade serve
àqueles que estão no domínio, porque alguém iria dizer que ser heterossexual é
violento, ou então porque algum de nossos opressores iria querer nos libertar
de um sistema que nos corrompe e violenta? A
realidade é que não querem e para tal coisa encontram saídas que se tornem
cabíveis para nossa realidade e façam crer que são libertarias quando na
verdade mulheres continuam andando para o extermínio através das mãos de seu
algoz. E é exatamente assim que vejo a bissexualidade feminina. Mulheres
ainda servindo aos homens sob o falso argumento de que podem se relacionar com
outras mulheres sem levantar a questão da heterossexualidade compulsória,
afinal, mulheres bissexuais também amam
mulheres e também se relacionam com mulheres. A minha questão é: quando
mulheres bissexuais se relacionam com homens, a quem isso serve? Quando homens
utilizam-se dos corpos dessas mulheres, as violentam sob o falso argumento de
amor e amor livre, a que isso serve se não para manutenção do
heteropatriarcado?
Quando
se assume que, mulheres podem amar mulheres e se envolver com mulheres cria-se
então um estado de histeria entre os agentes do patriarcado e esses mesmos
agentes criam então uma forma de burlar a visão da heterossexualidade
compulsória (que seria a dominação de mulheres por homens) e cria a
bissexualidade como se fosse uma porta de saída da heterossexualidade
compulsória quando na verdade a
bissexualidade é mais uma forma de homens conseguirem acesso a corpos femininos
e mais do que isso, a corpos femininos que se relacionam com outros corpos
femininos, assim fazendo com que a rede de violência criada por e para homens
se estenda.
Não
quero de forma alguma que mulheres bissexuais sintam-se por mim atacadas ou
sintam-se culpadas, mas é necessário que façamos esse tipo de análise, é
necessário que saibamos que a bissexualidade é um complemento da
heterossexualidade compulsória e este complemento aprisiona mulheres lésbicas
sob o argumento de que “ama-se a todos independente da genitália” quando na
realidade o pênis é o símbolo maior de violência e poder por parte dos homens.
É pelo discurso da bissexualidade e do amor livre que se tem prendido lésbicas
e mulheres ao opressor, é por meio desse discurso torto e vazio de argumentos,
discurso esse estimulado por homens, que se tem mantido mulheres presas à
heterossexualidade e enquanto tivermos mulheres presas a heterossexualidade e
enquanto mulheres não compreenderem que apenas a quebra da relação
opressor-oprimido é que pode libertar mulheres estaremos de mãos atadas ante ao
sistema patriarcal.
Bifobia
Bifobia é algo que sinceramente eu queria evitar abordar,
mas sinto a necessidade. Vamos primeiro falar sobre minha visão de opressão
estrutural e para isso citarei Marilyn Frye:
A
experiência de pessoas oprimidas é de que suas vidas são confinadas e moldadas
por forças e barreiras que não são acidentais ou ocasionais e, por conseguinte,
não evitáveis, mas são sistematicamente ligadas umas as outras de tal forma a
pressionar indivíduos entre elas e restringi-los e penalizá-los de diferentes
formas. É a experiência de ser enjaulado; todos os caminhos, todas as direções,
estão bloqueados.
Portanto,
opressão é o que inviabiliza o avanço de um grupo social ou étnico, é aquilo
que não permite o acesso, é o que restringe a mobilidade desses grupos em meio
a sociedade. Limitações e frustrações não são opressão. Alguém dizer a você,
bissexual, que você é indecisa não te faz apanhar na rua a não ser que você esteja com outra mulher, um homem
te fetichiza porque lésbicas são
comumente fetichizadas, porque lésbicas não permitem acesso masculino à seus
corpos, alguém te dizer (novamente) que você é indecisa é chato mas não te
impede de exercer sua sexualidade e você continuará tendo acesso à demandas
sociais que lésbicas não tem, se você bissexual estiver num relacionamento
heterossexual (ainda que eu te veja como vitima da heterossexualidade
compulsória) você terá o respeito que uma relação heterossexual adquiri na
sociedade heteropatriarcal.
Bissexuais
não têm seus caminhos fechados quando estão com homens, isso dentro do sistema
heteropatriarcal não faria o menor sentido, bissexuais sofrem quando estão em
relações lésbicas porque o sistema é heteropatriarcal e odeia mulheres e odeia
duplamente mulheres que se relacionam com mulheres. Ficar chateada com algumas
situações não as torna opressões, é necessário olhar o macro, se permanecermos
olhando o micro eu vou achar que, o fato de eu ser baixinha e não alcançar a
corda do ônibus pra dar sinal é uma opressão, mas no que isso me limitaria se o
município dispõe de outras possibilidades pra mim, como os botões que estão
inteiramente ao meu alcance?
Encerro
momentaneamente meu texto por aqui esperando ter sido clara e esperando que
possa tem contribuído de alguma forma ao debate e espero sinceramente que
possamos avançar sobre essa questão.
Por: Marx.