terça-feira, 13 de outubro de 2015

Mas, você sempre foi lésbica? - Por A. Fênix



E os namoradinhos? Huuumm, você e esse seu amigo aí eim, não sei não. 

Uma adolescência baseada em comentários toscos e de cobranças pela heterossexualidade. Assim foi minha adolescência, a adolescência de uma lésbica “não assumida” e que estava fora dos padrões estéticos de feminilidade, aliás, alguém que nunca entendeu direito o porquê não gostar da amiguinha por causa de um cara. 

Claro que presenciei coisas bizarras enquanto adolescente, principalmente adolescente cristã. Vi meninas e mulheres quase saindo no tapa por causa de machos (algumas até saíram), vi meninas engravidando cedo, abortando e todos fingindo que não viam. Mas na realidade quem era o alvo de todos os olhares tortos não eram os caras que engravidavam as minas e depois as faziam abortar ou os caras que abusavam de meninas muito mais novas que eles ou que ficavam jogando charminho pras gurias aproveitando um status de poder que um posto numa igreja permite, os olhares eram voltados para mim, a guria que nunca deu brechas para os caras, a guria que se importava muito com outras meninas e mulheres, a guria que não queria se parecer com o que esperavam dela. Passei por uma fase, dos 13 aos 16 anos em que podia não estar me adequando aos padrões de feminilidade que eram impostos a todas as outras: isso porque eu vinha de periferia e podia me vestir com rappers (homens mesmo) e muitas outras gurias o faziam (não preciso nem dizer que a maioria também era lésbica). Mas com toda a perseguição e bullying que comecei a enfrentar na escola decidi que talvez fosse o momento de me encaixar, por mais doloroso que fosse. Na escola, os guris já sacavam o quanto eu os rejeitava e passaram a me perseguir (e não somente a mim, a outras gurias que também resistiam para ficar com eles) mas por algum motivo eu fui o alvo escolhido. Passei por diversas situações constrangedoras, inclusive de uma vez um guri ir atrás de mim no banheiro, por sorte uma funcionária viu e foi atrás, outras vezes guris tentavam abusar fisicamente de mim e eu era protegida por amigas. Não, a escola não era fácil, principalmente quando os outros alunos percebem que você é lésbica.

Então entrei em uma fase de negação. Não, eu não era lésbica, eu apenas não sentia vontade de ficar com guris por que não era meu momento e obviamente que as lideranças da igreja estimulavam que eu pensasse assim. Então, enquanto na escola eu sofria bullying e perseguição, na igreja eu alcançava um status de poder já que os cristãos prezam tanto pra que meninas e mulheres se guardem para seu escolhido ao mesmo tempo em que estimulam que os guris sejam caçadores implacáveis. Ao alcançar esse status passei a perceber que muitas gurias não se aproximavam de mim. Hoje, mais madura e compreendendo o que é rivalidade feminina e lesbofobia entendo que haviam dois motivos: o primeiro exatamente pelo status que alcancei por ser ~pura~, por me manter longe dos guris, bom, pelo senso comum “as quietinhas comem pelos cantos”, então, possivelmente elas achavam que eu apenas sustentava uma máscara; segundo porque muitas delas sabiam ou achavam que sabiam que eu era lésbica e isso era muito mais grave, quero dizer, você até pode ser uma “vadiazinha”¹ que fica com os caras na surdina, mas lésbica? É nojento. E era assim que muitas delas me olhavam: com nojo.

Quando decidi me encaixar nos padrões passei a usar salto alto, maquiagem e roupas mais justas, sociais e de tons mais claros. Tudo isso me levou à depressão. Bom, obviamente que muita gente comemorou, incluindo minha mãe. Ali não era eu, era alguém que eles haviam construído. Eu sempre ouvia comentários como: “nossa, como você anda bem de salto”, “nossa, como esse lápis realça seu olho”, eu apenas sorria e agradecia como uma boa menina deve fazer. Mas o fato é que eu poderia me montar e performar feminilidade que algumas das outras gurias me olhariam e pensariam: lésbica. Ainda estava lá o nojo que elas direcionavam a mim, toda a raiva e frustração eram lançadas sobre mim. Nunca fui aceita nas rodinhas da igreja, o bulliyng e a perseguição eram disfarçadas e muito mais difíceis pra uma adolescente notar. Então, pra tentar me encaixar eu inventei que estava afim de um cara. Muita gente acreditou, chegaram a marcar um encontro meu com ele e claro que eu não fui. Já estava me traindo o suficiente, não poderia fazer aquilo.

Até então minha única concepção de lésbicas era da irmã de uma amiga da minha mãe. Uma lésbica negra e butch. Me lembro dela num dia de São Cosme e Damião me dando doces e dizendo que eu podia come-los, que não me fariam mal como a igreja dizia. Eu devia ter uns 7 anos. Foi uma das raras vezes que a vi, tornei a vê-la novamente com a companheira dela um tempo depois e nunca mais. E claro, nos cultos ouvia falar sobre gays e como eles eram pecaminosos, nojentos e tudo o mais, mas nunca ouvi falar sobre lésbicas. Tudo o que ouvia falar sobre mulheres é de como elas deviam servir aos homens, de como elas deviam fazer suas vidas girarem em torno de homens. Aí estava um problema, tanto na minha infância quanto na minha adolescência minhas intenções, sentimentos e afetos sempre estiveram voltados para meninas e mulheres, eu nunca foquei minhas energias afetivas em meninos e homens. E isso era muito perceptível dentro da igreja e da escola. Enquanto gurias estavam sendo engolidas pela heterossexualidade e brigando entre si por guris, eu estava ali pra auxilia-las e mantê-las seguras, mesmo sem saber que isso já era minha lesbiandade gritando, não sabia que todo esse cuidado era porque amava mulheres como mulheres. Só me diziam que eu era uma pessoa boa, porque se uma mulher foca em outras mulheres, doa seu tempo e afeto, as auxilia e ajuda, ela só pode ser uma pessoa boa, ela não pode simplesmente as amar enquanto mulheres, as desejar, ela apenas o faz porque é uma boa pessoa, não porque é lésbica!

Ao encerrar o colégio, decidi não parar e logo me aventurei na faculdade. Lá tive o prazer de conhecer um rapaz gay, com quem passei muito tempo conversando sobre ser homossexual em uma família cristã. Até então eu ainda não havia tido coragem suficiente para dizer que sim, eu sou lésbica. Isso me assustava principalmente pelo medo que a religião impunha. Mas aos poucos fui descobrindo como ser lésbica e assumir para mim mesma era libertador. Então chamei uma amiga e disse pra ela: “eu sou gay”, ao que ela imediatamente me respondeu: “você não é gay, você é lésbica”. Desde então eu repito para mim mesma: eu sou lésbica e não há coisa melhor do que ser lésbica, do que me doar para outras mulheres, conviver com elas, as amar, desejar, toca-las e de ter trocas de caricias e de ao fechar meus olhos lembrar como meu corpo reage aos seus toques, beijos e palavras. 

Então a resposta para a pergunta que dá nome a esse texto é: sim, eu sempre fui lésbica, cada parte do meu corpo e mente gritam lesbiandade, gritam amor por mulheres, gritam desejo por elas. Minha lesbiandade não se trata de não querer homens, se trata de querer mulheres; não se trata de querer homens longe, se trata de querer mulheres por perto; minha lesbiandade não gira em torno de como odeio homens, gira em torno de como amo e desejo mulheres.

Eu sou lésbica porque amo mulheres, as quero, as desejo e é pra elas que volto minhas energias afetivas e sexuais, ser lésbica não se resume a homens e mantê-los afastados, se resume a amar mulheres e seguir enfrentando o que for preciso para permanecer as amando. Amar mulheres é o foco da minha lesbiandade, o resto é resistência e consequência.


1- Usei o termo "vadiazinha" por se tratar de algo comumente usado para condenar mulheres.




A. Fênix