quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Meu corpo, Minhas Regras até... você ser Lésbica



Eu inicio meu texto transcrevendo o que uma lésbica militante disse para mim uma vez: “Transfobia é você discriminar alguém por ser trans, não dar emprego, impedir que transite em algum lugar, não transar com essa pessoa é direito meu”. 


O que eu sempre vejo no feminismo é uma luta constante por autonomia do próprio corpo, é nisso que consiste “meu corpo, minhas regras” na autonomia da mulher poder dizer sim e principalmente em dizer não. Mulheres, quando se deparam com homens invasivos, que tentam impor a elas o acesso de seus corpos são, instantaneamente, reconhecidos enquanto abusadores que são e então, a partir daí, essas mulheres reagem a tentativa de abuso e se sentem fortes ao fim da noite, ao fim da festa, ao fim do happy hour por conseguirem barrar um abusador, por conseguirem simplesmente dizer não à um homem. Quando mulheres estão reunidas e homens tentam invadir seus espaços, elas então, muitas vezes em conjunto, reagem à presença desses homens, expulsando-os e denunciando-os como invasores e abusadores que de fato, são. Quando homens abordam mulheres para que tenham relações sexuais, essas mulheres, ao passo que conheçam seus direitos e tenham voz, se sentem, suportadas por outras mulheres, seguras em dizer não. E esses exemplos são grandes avanços e grandes conquistas para muitas mulheres que descobrem que o dizer “não” é a verdadeira liberdade que tanto se fala. No entanto, se essas mulheres forem lésbicas, o direito de dizer não lhes é tirado sem dialogo ou empatia, lhes é arrancado.


Lésbicas não têm o direito de dizer não. A política liberal do sexo livre tira o direito de lésbicas em dizer não ao acesso de homens a seus corpos. “Não se limite” dizem para mulheres lésbicas, que, como toda vítima, coagida e só, acaba cedendo (e ceder não é consentir) e sofrendo violências que talvez diga para si mesma que não sejam violências, tentando se adaptar a realidade imposta, às normas liberais, permitindo que homens acessem seu corpo, fingindo para si mesma que gosta, para que não seja rotulada acaba violentada. Em meio aos estupros corretivos, lésbicas acabam naturalizando violências sofridas: “eu não gostava, mas com o tempo posso gostar”; “ele é legal, me trata com respeito”; enquanto sua consciência escorre pelos dedos, enquanto sozinha se pergunta se não há saída, enquanto todos dizem que rótulos limitam e tudo que limita é tóxico ela perde, dentro de si, a mulher que um dia foi, perde, dento de si, a possibilidade do não; tiram dela a autonomia celebrada por outras mulheres, tiram dela o direito da autonomia de seu corpo, o direito à livre expressão de sua sexualidade. E ela é lésbica.


Mas, lésbicas também tem seu direito tirado pelo transativismo, uma vez que, lésbicas, históricamente, são mulheres que se relacionam com mulheres que são pessoas nascidas com vagina, ao, impor uma relação pênis + vagina para uma lésbica e, negando-lhe o direito de dizer não, sob a falsa cartada da transfobia, o transativismo está, assim como todo o sistema, dizendo que lésbicas não tem direito ou autonomia sobre seu próprio corpo, ao negar a história da lesbiandade e da resistência do que é ser lésbica,o transativismo está, como todo o sistema, dizendo que lésbicas não tem direito ao acesso e a afirmação de sua história, ao impor a relação pênis + vagina para lésbicas e tirando-lhes o direito de dizer não e as acusando de conivência com violências homofóbicas, o transativismo está, na verdade, chantageando, manipulando, coagindo e violentando lésbicas. Você lésbica, que está lendo meu texto e discorda, experimente dizer não à um transativista, experimente contar a história da lesbiandade, experimente dizer que sexo conta sim, que nós amamos bucetas e essa é nossa história, experimente não consentir que um transativista tenha acesso à seu corpo. Não, nós não estamos seguras com transativistas em nossos espaços, nós não estamos seguras porque não temos direito e autonomia para dizer não. Quando esse direito nos é tirada, nada mais sobra do que ceder e ceder não é consentir, temer ser comparada com homofóbicos por fazer valer a autonomia sobre seu corpo não é consentimento, é violação.


Lembremo-nos do orgulho em sermos lésbicas, lembremo-nos do orgulho em amar mulheres, suas vaginas, seus seios, seu intelecto, sua afetividade, sua amizade, lembremo-nos de que somos as mulheres que homens nunca tiveram ou nunca mais terão acesso. Apoiemos umas às outras, libertemo-nos das violações e imposições e alcancemos o direito e autonomia do dizer NÃO.

Por: Marx Lopes.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Entrevista com Gisela Carvalho



O Papo Reto no Brejo começa, a partir de hoje, com uma série de entrevistas e textos sobre a história de mulheres lésbicas, e hoje começaremos com a entrevista com a militante lésbica Gisela Carvalho, carioca, co-fundadora do COLERJ (Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro), entidade responsável pelo primeiro SENALE (Seminário Nacional de Lésbicas) em 1996. Segue abaixo a entrevista. Vem com a gente sapatão.




Papo Reto no Brejo – Como foi se descobrir lésbica?
Gisela Carvalho - Eu era muito nova e eu já me sentia diferente das outras meninas. Nunca gostei de brincar de boneca, de umas coisas mais femininas né, ditas femininas. Eu tenho 52 anos, então há quarenta e poucos anos atrás era mais complicado, hoje as situações estão mais interessantes. As meninas estão jogando futebol, estão com mais liberdade com os brinquedos, não necessariamente são lésbicas. Na minha época foi bem difícil. A minha primeira namorada acho, que foi com 18, por aí, mas assim, foi difícil, eu percebi que.. muita discriminação né, das pessoas, das amizades, das pessoas ao redor, não foi fácil.


PRB - E a relação com família e amigos, como ficou depois que você se assumiu?
G.C - Com a família, até hoje né, até hoje tem uma dificuldade. A vida inteira ficou uma dificuldade. E os amigos, eles começam a se afastar, poucos conseguem ficar do seu lado, muito poucos, muito difícil. E quando você é jovem e você tem aquela amiga que você se amarra nela, que você gosta muito como amiga, aí ela chega naquele momento em que ela precisa casar né, aí ela começa a se afastar de você porque ela não pode andar com uma lésbica do lado, aí vão associar, as pessoas vão fazer uma associação e ela não vai conseguir “desencalhar”, e isso aconteceu com algumas pessoas que eu considerava muito, e eu demorei a perceber esse afastamento.


PRB - De onde surge a necessidade de um movimento voltado as lésbicas? Como foi o desenvolvimento do COLERJ? Houve apoio de partidos ou do movimento LGBT?

G.C - O COLERJ, a procura por criar, me reunir, criar um grupo, partiu dessas minhas angústias né, da necessidade de se reunir e fazer um grupo homogêneo... um grupo de mulheres pra gente discutir nossas questões, nossas particularidades, que são diferentes das particularidades dos [homens] gays, são coisas diferentes. E apoio de partidos, assim, teve uma vez que eu precisei viajar pra SP e consegui a Jurema Batista¹, na época, mas não era uma coisa sempre né, uma coisa regular. E do movimento LGBT, asssim, eu vejo que nada mudou né, porque o que eu vejo é que os gays continuam com muito mais visibilidade e as lésbicas continuam com zero de visibilidade, é o que eu to percebendo agora conhecendo vocês², meio que retornando agora nessa história por conta do meu espaço e eu to vendo que pouca coisa evoluiu em relação a mulher lésbica, o que eu acho lamentável.


PRB - Como era lutar contra a lesbofobia há 20 ou 30 anos atrás? E o que você acha que mudou atualmente? E quais são as principais diferenças e críticas para a militância atual?

G.C - É, brigar com a lesbofobia, ah cara, isso é toda hora né. O que eu vejo é que hoje em dia as pessoas estão com mais vergonha de se mostrarem preconceituosas. Exceto na internet né, exceto atrás do computador, né, no computador fica tudo muito fácil. Agora presencial, eu vejo que as pessoas têm muita “vergoinha” de se mostrar, antigamente ninguém tinha vergonha não. Era sapatão mesmo, era mulher-macho, né, era xingamento mesmo na rua, era real, era vida real antigamente. Não que isso tenha desaparecido né, isso não desapareceu, mas ta um pouco menos, acho que as pessoas ficam constrangidas. E as lésbicas, eu acho que, não somente as lésbicas, acho que toda a comunidade LGBT, ela ta mais empoderada pra responder a essas agressões. Atualmente eu vejo mais isso, menos culpa de... eu acho que tem muita resposta “sou e daí” “qual é a novidade? Descobriu a pólvora, a roda?” né, eu to vendo as pessoas mais empoderadas a responder essas agressões.


PRB - Você acha que lésbicas desde os anos 80 ou 90 conseguiram mais espaços e representatividade ou que ainda temos um longo caminho a seguir?

G.C - Acho que tem muita coisa ainda. Eu acho que tem muita coisa. Enquanto as pessoas continuarem nesses armários, a gente tem pouca representatividade. Eu vi uma entrevista de um juiz que é gay assumido, infelizmente não to conseguindo lembrar o nome, que ele disse que o ideal seria que pessoas, celebridades ou pessoas que tem uma importância social se assumissem, porque o que ta faltando é representatividade. Porque quando a gente tem na música brasileira cantoras que todas nós, nos bastidores, sabemos que ela é lésbica e ela vai a público e diz que é bissexual isso causa desserviço, entendeu, isso causa um desserviço porque eu fico me questionando que bissexualidade é essa? Foi o empresário que mandou ela dizer que é bissexual pra vender mais disco? Então, uma pessoa que desde que se lançou no mercado se lançou como sapatão aí depois que vendeu milhões de discos aí diz que é bissexual, então, eu não entendo isso. Eu não to aqui dizendo que bissexual não existe, não é isso, entendeu? Mas eu não entendo isso, porque você não vê os cantores gays dizendo que são gays, “eu sou gay”, eles vão cantam dão o recado no palco e eles não ficam falando da vida particular deles. Aí porque q a cantora lésbica tem que abrir a boca e dizer alguma coisa? Eu não entendo isso. Isso é na musica, isso é no esporte também, no esporte também tem muito isso. Você vê nitidamente que a atleta é sapatão, ai vem um jornalista e pergunta “você usa batom?”. Porra ,sabe, a mulher ta lá aumentando o tempo dela na modalidade, ganhando medalha e a pergunta vem “quando você usa maquiagem pra treinar?”, entendeu?. O que que isso tem a ver com o treinamento dela como atleta? É só uma cosia de você pegar qualquer entrevista de Globo Esporte, de Globo qualquer aí que as perguntas pras mulheres atletas é essa “você não perde o rebolado né?”, “você não perde a maquiagem”, “que legal o seu esmalte”, agora perguntar se aquele kimono foi caro, “como foi pra você fazer esse esporte com o kimono custando quase 200 reais ou 200 reais, você que veio da favela como que você comprava kimono, como e que você treinava num esporte que é caro?”, ninguém pergunta isso pra atleta.



PRB - Sobre o racismo no movimento gay e nos espaços lésbicos?

G.C - Sei não (risos). Sei lá como que eu vou conscientizar entendeu? O racismo ta aí, o que mata é a hipocrisia. As pessoas namoram pessoas negras, namoram pessoas brancas e quando o namoro é interracial é engraçado né porque a pessoa acha que não é racista mais: “não, a minha namorada é negra, não sou racista”, né? As coisas tão aí, como tão em todos os lugares. O racismo ta aí, no movimento LGBT ta aí também, ta ai como ta em todos os lugares. As pessoas elas não fazem uma peneira, uma conscientização né, “eu faço parte de uma minoria, então eu não posso ser preconceituosa”, não, ninguém faz esse recorte, ninguém tem essa conscientização. “Poxa eu sou gorda, eu também sou discriminada, eu não posso discriminar”, não, a pessoa esquece que é gorda, esquece que é negra, esquece que é deficiente e sai discriminando como se não fosse morrer, né. As coisas tão ai em todos os lugares.


PRB - Como é envelhecer para uma lésbica?

G.C - É complicado, é mais uma invisibilidade, entendeu? Mas pior deve ser, e é uma coisa que eu percebo já tem tempo, é uma pessoa que não acha que vai envelhecer, uma pessoa que sempre foi bonita, sempre foi magra, sempre foi desejada, sempre ganhou quem queria, quem não queria, pra essa pessoa deve ser bem difícil envelhecer. Porque o envelhecimento, ele ta aí, entendeu? Pra mim, a única coisa que eu fico chateada é que eu gostava muito de esporte e os meus joelhos não deixam mais eu praticar o que eu gosto de fazer. O desagradável pra mim do envelhecimento é esse. Mas aí a gente tem que ter, eu, eu tenho que ter essa conscientização de jogar a minha energia pra outros objetivos de vida. É o que eu tenho procurado fazer agora, jogar minha energia, jogar o meu saber, a minha experiência pra outro lugar agora, canalizar pra outro lugar. Porque envelhecer não tem nada de bom, quer dizer não tem nada de bom na questão física, na questão social você tem que ser uma pessoa... você tem que ter uma cultura, você tem que ter uma conscientização na questão social porque as pessoas te discriminam muito, né, muito, muito. Porque aqui no ocidente o velho, a pessoa mais velha não tem poder, não tem, é, visibilidade também, mas não tem valor né, não tem valor. E a mídia o tempo inteiro ela fortalece isso, essa desvalorização do saber e a desvalorização da sua experiência de vida, né. Quando você faz um programa que enaltece uma pessoa que fala errado, né, uma coisa é você entender a comunicação, você ta entendendo o recado que aquela pessoa ta querendo dizer, agora você dizer que isso é bacana, entendeu? Eu acho muito complicado. Porque esse último trabalho que eu perdi, que eu fui discriminada por assédio moral, que eu sofri assedio moral, a minha chefe era menos qualificada que eu e falava um português totalmente errado, então ta rolando também na nossa sociedade uma discriminação absurda de quem é pobre e quem teve o finalzinho da escola publica decente, que foi meu caso. Aí quer dizer, eu to sendo discriminada porque o meu português é possível, uma coisa que antigamente era motivo de orgulho pras pessoas, hoje em dia eu tenho que ficar calada dependendo do ambiente que eu tiver, porque se você fala corretamente nego torce o nariz pra você. O negocio chegou num ponto que eu ouvi, eu ouvi um papo de que “fulano comeu strogonoff de garfo e faca” e aí eu fiquei pensando assim “ué, mas como é que se come?”. Quer dizer, as coisas estão ladeira abaixo sabe, tão ladeira abaixo. Quer dizer, você não pode mais comer de garfo e faca. Sabe, aí você é arrogante. O que que esta havendo na sociedade, entendeu? O que que está havendo? E o que acontece comigo é isso, porque eu quebro muita expectativa (estereótipo), porque a pessoa me olha, negra, gorda, não sei o que, agora com a nova modalidade deficiente física, aí quando abre a boca ela tem uma cultura, não, não pode, ela tem que falar errado, ela tem que ser burra, ela tem que ser burra. Aí como ela não é burra, ai ela tem que ser a criadora de caso, ela tem que ser a arrogante, ela tem que ser isso, entendeu? Então vamos arrumar um defeito pra ela, vamos procurar um defeito. Foi o que aconteceu no meu ultimo emprego. Foi o que aconteceu, porque se eu tivesse dentro do pacote da expectativa, eu tava trabalhando lá ate hoje. É isso, tem umas coisas que estão muito equivocadas.


PRB - Você falou dos seu joelhos, aí.. Como é o tratamento nos serviços básicos de saúde? Existe algum tipo de destratamento? Houve alguma mudança no comportamento de outras lesbicas em relação a voce depois que você descobriu o problema nos joelhos?

G.C - Olha, em relação ao atendimento que eu tenho, eu me trato numa clínica da família aqui perto da minha casa, o meu médico é maravilhoso, entendeu? A médica que tava me tratando antes dele, ela era maravilhosa também, aí ela foi transferida e me apresentou ele. Ele é gay e é um gay empoderado, é um gay consciente, né. E ele atende eu e a minha mulher, ele é uma pessoa muito respeitosa, o atendimento dele é maravilhoso. O que acontece, o que eu vejo mesmo que acontece na saúde publica é você conseguir entrar, né, você conseguir entrar pra se tratar, o sufoco é esse. Aí como eu já tenho prontuário há algum tempo, aí eu entro nas filas dos exames, nas filas de tudo, eu me trato atualmente com esse medico que e medico da família e tenho uma psicóloga que me atende também, entendeu? E to na fila do INTO³, que a fila do INTO é aquilo que todo mundo sabe, porque ninguém morre de dor, então você pode ficar esperando 5 anos pra trocar o seu joelho, pra colocar uma prótese, porque dor não mata, ela só enlouquece a pessoa, mas ela não te mata. Então, “azeite” pra sua qualidade de vida, que você que se lasque na sua qualidade de vida, porque a dor não mata. Então eu to aí na fila do INTO e em relação à discriminação em relação a outras lésbicas, isso aí sempre tem, entendeu, isso ai é uma coisa mesmo de observar. É porque eu acho que eu tenho, eu acho não, eu tenho certeza, eu tenho outras coisas pra oferecer alem do meu joelho, eu tenho cérebro. Então eu não me preocupo. As mulheres com quem eu namorei nesse processo, já com o joelho ruim, a gente conquista com conversa, com inteligência, com outros assuntos, então, não vou dizer que não sofri preconceito, certamente devo ter sofrido, mas assim, as pessoas não falam né. As pessoas não tem coragem de falar, elas não falam nada. Mas hoje em dia eu to com uma mulher maravilhosa do meu lado, hiper cuidadosa comigo, preocupada e ela gosta de mim pelo que eu transmito pra ela. E ela já me conheceu com esse joelho ruim, desse jeito (risos). É isso.


PRB- Assunto polemico agora
GC – Mais? (risos)

PRB- (risos) Nos últimos anos, temos ouvido falar sobre homens que se identificam enquanto mulheres e que tem insistido para que lésbicas se relacionem com eles. O que você pensa sobre isso?

GC – Olha só, esse assunto eu fiquei sabendo através de vocês. Inclusive no meu face(sic) tem trans homem[...]. Essa historia de trans mulher com pênis transar com lésbica, eu acho que pênis e vagina é heterossexualidade, né? Então, na década de 90, quando eu comecei a freqüentar o movimento lésbico, não tinha essa questão, esse assunto, pelo menos eu não consigo me lembrar, ta? Pra mim isso não é um relacionamento lésbico, um relacionamento lésbico é vagina com vagina, é dedo, é língua, essas coisas todas né, isso ai... eu já ouvi falar que é estupro corretivo né, pode ser também, pode ser também mais uma maneira de desqualificar nossos espaços, eu acho que pode ser muita coisa, né? E outra coisa que eu aprendi com vocês é que falar o que eu to falando, eu ganho o titulo de transfóbica. Bom, então eu sou transfóbica, porque (risos), eu acho que voce ser fóbica de alguma coisa, como eu já falei anteriormente, é você discriminar a pessoa, né, se eu não quero transar com uma pessoa que tem um piru eu acho que eu não sou transfóbica. Eu não quero transar com um piru, pra mim é muito simples. Então, quem ta usando desse artifício pra dar essa titularidade às pessoas ta agindo de má fé, isso aí é um mau-caratismo pra mim. Porque transar com piru não é um sexo lésbico, ta? É muita modernidade pra minha cabeça, pra mim não é um sexo lésbico.

PRB- De onde surge a idéia do Resiliência?
GC- O Resiliência, ele surgiu depois desse ultimo emprego, dessa ultima demissão por assedio moral, no ultimo lugar que eu trabalhei. Que eu chegava todo dia no horário, apesar das minhas dores, né, eu chegava no horário, procurava fazer tudo corretamente pra ficar invisível porque a chefe que foi eleita pela direção da organização social, ela me perseguia, né. O motivo pode ser vários, podem ser vários. E ela me perseguia e isso qualquer coisa que eu falasse, qualquer bobagem que eu falasse, qualquer participação em reunião de equipe, né, a equipe poderia ter falado a mesma coisa, mas se eu falasse aquilo tomava um peso enorme. Tipo o salário das pessoas chegando atrasado na conta de todo mundo, a equipe inteira reclamando, a equipe inteira reclamando que o salário não caiu, ai eu fazia o mesmo comentário ela ligava pra direção e dizia que só eu tava reclamando. Desse nível. O registro de ponto digital, o meu ficou sem funcionar meses, eu chegava pra trabalhar, eu tinha que assinar um documento, a equipe inteira colocando o dedo lá no ponto digital e só o meu que tava quebrado. Aí finalmente ela conseguiu me demitir, eu fiquei muito mal com essa história, porque a gota d’água foi o dia que eu sai uma hora mais cedo, porque a nossa sala tava em obras, não tinha como trabalhar, ai eu sai uma hora mais cedo, ela queria que as pessoas ficassem ate as 17h, nos saímos as 16h, eu, uma medica e uma enfermeira, três profissionais de nível superior, eu sou terapeuta ocupacional. Três profissionais de nível superior, só eu perdi o emprego, entendeu, só a negra, lésbica, perdeu o emprego. As outras duas funcionarias não perderam o emprego. Então, ela me demitiu, eu fiquei péssima, tentei entrar com uma ação, a juíza entendeu que não aconteceu nada comigo e, aí eu continuei procurando emprego, mas certamente ela deve ter me queimado ai “na praça”, não consegui entrar de novo no mercado, o dinheiro acabando, ai eu comecei a pensar em alguma coisa na minha casa. Já tinha algumas amigas que freqüentavam aqui em casa e gostavam muito de ficar aqui, se sentiam em casa e tal, aí eu pensei “vou vender cerveja”, entendeu ai a idéia do Resiliência foi crescendo, porque eu não queria rasgar o meu diploma totalmente, eu queria pensar em voltar a trabalhar como terapeuta ocupacional, que foi uma coisa que eu investi, eu me formei e emendei duas pós-graduações, justamente pra não acontecer o que aconteceu. Justamente pra não dar motivo pras pessoas me perseguirem, mas não adiantou nada. Quando as pessoas querem elas te perseguem, eu poderia ter doutorado que ia continuar a mesma coisa. Enfim, aí o Resiliência, ele foi se desenhando, ele foi se desenhando, e agora graças a todas as Entidades aí, eu conheci vocês do Visibilidade, to conhecendo o grupo da Coletiva Ira, tem as feministas da Zona Norte que já fizeram uma reunião aqui, fora outras pessoas que não são de grupos políticos mas que tão descobrindo o Resiliência, se sentem mais a vontade aqui. Ta tendo uma professora de dança do ventre aqui terça e quinta que da uma aula particular pra uma senhora que é vizinha, entendeu? Tem outras propostas de projetos aqui pro espaço. E essa situação que aconteceu comigo aos poucos ta saindo da minha cabeça, aos poucos ela ta se desmanchando, porque foi uma situação muito dura, muito absurda e eu espero, sinceramente, não encontrar mais essa mulher na minha vida, entendeu, o Rio de Janeiro é pequeno, eu não tenho mais conseguido sair de casa, praticamente não saio de casa, só vou pra medico, só vou pros tratamentos de saúde e eu tenho muito medo de encontrar com ela na rua, porque eu não sei da minha reação, assim, se eu vou passar mal, se eu vou xingar ela, não sei. Porque ela foi muito cruel, ela foi uma pessoa muito mau caráter. Sabe, eu acho que você tem que ter, dizem que eu sou arrogante, devo ser mesmo e não to muito preocupada com isso, mas eu acho que você tem que ter consciência do que você é. Uma vez eu ouvi um intelectual falando, um escritor, não lembro quem, falando que esse papo de dizer que é humilde isso é maior hipocrisia, porque se você sabe que você é fera em determinado assunto, determinada coisa, você é fera e acabou. Então não vem com esse papo de “humildizinha”, entendeu? Aí eu sou arrogante, por que eu sou arrogante? Tenho que ficar falando “pobrema”(sic) “pra mim fazer” (sic) pra eu ser taxada de humilde? Sabe? Então eu sou arrogante sabe, eu sou de outra época, eu sou de outra geração, entendeu? Então eu não vou ficar entrando nessa vibe, como dizem vocês [...]. Eu falo gíria se eu tiver que falar gíria, mas eu não to a fim de descer meu nível, entendeu, pra ficar na moda. Quem gosta de miséria é a Regina Casé, sabe? Ela que acha graça naquelas coisas que ela bota lá pra todo mundo achar que preto é daquele jeito, que todo preto é assim, sabe. Não é assim. Eu conheço várias pessoas negras que não suportam aquele programa, entendeu? Que não suportam aquele programa, porque faz uma exaltação a uma pobreza, sabe? Ai você que é negro, não ta nem lá em cima, nem lá embaixo, você se lasca. Porque você tem que ta la no submundo da doideira. “Brasileiro tem que gostar de funk”, por que que tem que gostar de funk? Por que que tem que gostar de funk? Da onde tiram uma idéia dessa? Entendeu? Por um acaso eu não nasci na favela, eu poderia ter nascido na favela. Porque o que foi direcionado pra nós negros foi tudo de ruim, foi tudo de ruim. Eu poderia ter nascido na favela, só que por um acaso eu não nasci. Aí eu tenho que ficar levando na cara, levar chicotada porque eu não nasci na favela? Porra, faça-me o favor, cara. O que ta acontecendo é isso, as pessoas tem que ter a mesma origem. Não é, tem pessoas que tiveram origens diferentes. Eu tive um padrinho que foi ex-combatente da segunda guerra, então foi nessa historia que ele conseguiu construir essa casa aqui, é por isso que ele conseguiu construir essa casa, é por isso que essa casa é bem localizada. É uma tentativa de desqualificar, em tudo, é na mídia, esse diabo dessa meritocracia. Como que uma pessoa que passa por situações como eu passei vai ter saúde mental pra continuar estudando? Se pra eu sair da cama é um sacrifício, pra eu me levantar de manha cedo é um sacrifício, ou pela artrose, ou pelo joelho que ta parado, ou pela minha depressão. É isso.


PRB - Você quer deixar algum recado pras lésbicas em relação à lesbiandade, em relação à negritude?
G.C - Sei lá, eu acho que as pessoas têm que... O ideal... Conscientização é tudo. As pessoas têm que parar de achar que as pessoas gostam da gente, que o mundo é azul, que o mundo é colorido, é cor-de-rosa. Isso é tudo mentira. Não é. Não é. A discriminação é cotidiana. A luta é diária, é diária. A discriminação, ela ta ai. Veio uma menina agora, antes de vocês, me entrevistar e ela falou que conhece uma lésbica que sobe no morro pra comprar baseado pros amigos heteros, que ela quer fazer a fofa, quer ser a querida do role,sabe? Se liga na auto-estima, se liga na auto-estima. O recado é esse. Porque não adianta, no final ninguém quer saber da gente não. A gente tem que estudar, a gente tem que se empoderar, a gente tem que ler pra caramba, tem que saber o que ta falando, não tem que ter vergonha de falar corretamente e é isso aí. Porque se falar errado fosse bonito o concurso público tinha acabado, o português do concurso publico tinha acabado, ia entrar qualquer um. Entendeu? A gente tem que se conscientizar das coisas gente. 


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1- Vereadora do PT;

2- Lésbicas Radicais da organização do mês da visibilidade lésbica

3- Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia


Grafite feito por JLo Borges: "As Sapa Tão no Resiliência"




Visão Geral do espaço



Contato com o espaço Resiliência



Gisela Carvalho

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Em memória de Katiane Campos

"Ela gostava de olhar a lua e de cantar"

Nós não sabemos como iniciar esse texto. Estamos todas abaladas, de coração partido e revoltadas com a morte de Katiane. A última coisa que conheceu foi crueldade e violência e pensar nisso, dói. Tanto a dizer, a sentir, e as palavras fogem, ficam entaladas na garganta. Nos pegamos pensando: o que podemos fazer para manter Katiane viva em nossos corações e memórias, mesmo que nunca a tenhamos conhecido, visto ou sequer tenhamos sabido quem era até que sua vida tenha sido cruelmente interrompida? Vamos manter seu nome em nossos corações em mentes, para que nunca a esqueçamos, como nunca iremos nos esquecer de Laís, Luana, Priscila e tantas outras cujos nomes estarão sempre em nossas memórias.

Katiane Campos de Gois tinha 26 anos e foi cruelmente assassinada em 27/08/2016, na área central de Brasília, ironicamente, no mês da Visibilidade Lésbica. E não será esquecida por nós.

A escuridão da noite era densa 

A lua parecia querer se esconder

Clamei para que me olhasse nos olhos

Mas negou-se naquela noite

Triste estava, e só, se lamentava

Do alto pode ver todas as dores

Do alto pode ver uma de suas admiradoras

E uma de suas admiradas, partir

Nada pode fazer a não ser se esconder

E lamentar

Escondeu-se, para que não pudesse ter sua tristeza escancarada

Sua admirada partia debaixo de seu brilho

Ah, se pudesse se negar a voltar a brilhar!

Ah, se pudesse chorar

Nunca mais ouvirá a voz de sua admirada

Nunca mais colocará sob sua pele

Negra pele, o toque de seu brilho

Mas se negará, para sempre, esquecer-se de sua admirada

Seu nome estará cravado sob seu brilho e jamais será esquecido

Katiane”.