sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O Estatuto da Família e a conivência à lesbofobia


Primeiramente: gostaria de ver este assunto com tanta visibilidade como foi o casamento gay legalizado nos EUA.

"A Comissão Especial sobre Estatuto da Família (PL 6.583/13) aprovou nesta quinta-feira (24), por 17 votos a 5, o parecer do relator, deputado Diego Garcia (PHS-PR). O texto segue agora para o plenário da Câmara, com a polêmica sobre o conceito de família, que restringe as prerrogativas às famílias tradicionais, excluindo do texto os casais homoafetivos. "

Essa notícia me deixou estarrecida.

Alguns fatos: perante o Estado, um pilar que mantém o capitalismo, o patriarcado e a supremacia branca, "família" é uma instituição formada apenas por um homem e uma mulher, e isto não é nenhuma novidade. O Estado trabalha em benefício dos interesses dos homens, e aliado à Igreja, é uma instituição que serve para a manutenção dos interesses da "família tradicional brasileira". A "família" é a soma da heterossexualidade enquanto regime político, a monogamia, e a naturalização e institucionalização do poder dos homens sobre as mulheres.
Estes interesses, bem específicos, tem a ver intimamente com o controle e exploração patriarcal.
Afinal, a reprodução, é uma das ferramentas de manutenção da exploração sexual e reprodutiva das mulheres. O que caracteriza família enquanto "família", em termos conceituais, é a possibilidade de procriação e manutenção dos interesses dos patriarcas, dos homens, em benefício e privilégio deles. Ter o controle sobre nossas capacidades reprodutivas, é de suma importância. E a família entra aí como uma ferramenta de viabilização.

Este conceito, interligado aos interesses da Igreja, que notoriamente também trabalha em benefício dos homens, coloca a família como uma instituição "sagrada", tornando o conceito inflexível, ou seja, casais formados por gays e lésbicas nunca serão uma família "de verdade", já que não procriam "sob as leis de deus".
Eu gostaria muito de dizer que não me importo em ter minha namorada e meu filho como "família", já que não acredito em uma ressignificação ou reforma deste conceito, mas na total destruição, abolição da instituição família. Gostaria de dizer, que não me importo que as pessoas que eu escolhi amar e conviver, dividir minha vida, não constituem uma "família", já que só por não existir um homem na nossa relação, somos uma resistência à heterossexualidade compulsória, completamente ligada ao conceito de "família". Gostaria de dizer que resistimos à "família", que resistimos ao interesse, poder e controle masculino.

Mas esse projeto de lei aprovado pelos deputados, institucionaliza de maneira bem específica a homofobia, e mais especialmente, a lesbofobia.
A homofobia e a lesbofobia já são institucionalizadas, sabemos. Lésbicas e gays são invisibilizados, marginalizados, agredidos, mortos. E o Estado dá o aval institucional para isso não é de hoje. Somos agredidos e mortos por sermos lésbicas e gays. Nossos filhos são agredidos e mortos porque somos lésbicas e gays. Mesmo se o Estado aprovasse o exato o oposto que este projeto de lei sugere, ou seja, estabelecer enquanto família também uniões formadas por pessoas do mesmo sexo, continuaríamos sendo mortos.
Um exemplo desta afirmação, é o casamento civil homoafetivo, por exemplo, legalizado no Brasil desde 2011, teoricamente reconhece, institucionalmente, "casais formados por pessoas do mesmo sexo de maneira equiparada aos heterossexuais". Com isso, de nada mudou o preconceito simbólico, material e institucional em relação à nós, gays e lésbicas. Continuamos morrendo mesmo podendo casar civilmente. Essa flexibilização também se deve a assimilação do Estado, do capitalismo, perante a nós, e especialmente aos interesses dos homens gays, ricos e brancos.

De maneira alguma o casamento homoafetivo é uma ferramenta revolucionária, mas é uma via que garante alguns direitos básicos, de acesso à alguns reconhecimentos necessários perante o Estado.
Entendo que o reconhecimento que pessoas do mesmo sexo possam formar uma família, e não apenas uma "união vitalícia" como o deputado autor do projeto propõe, é uma garantia BÁSICA E INQUESTIONÁVEL dos direitos BÁSICOS E INQUESTIONÁVEIS de qualquer pessoa, que deveria ser garantida pelo Estado, que deveria ser laico. Negar que podemos formar uma família, é colaborar e reificar com a violência que sofremos todos os dias - eu sempre vou fazer esse recorte: especialmente as lésbicas. Porque não sofremos "homofobia", sofremos LESBOFOBIA, que é somada à misoginia, também institucionalizada.
Negar que podemos formar uma família, é assinar assassinatos contra gays e lésbicas. Negar que podemos formar uma família, é assinar a agressão e assassinato contra nossos filhos. 
E pasmem: nós temos filhos. Inclusive muitas lésbicas e gays, tem filhos biológicos fruto de relações heterossexuais anteriores devido à coerção da heterossexualidade enquanto regime político. No caso das lésbicas, frutos de estupro. 

Reivindico minha união, composta pela minha namorada e meu filho, enquanto família. Não por acreditar que somos "equiparáveis a família heterossexual", porque não somos. Isso seria retirar todo o teor político e a função da família dentro do patriarcado e do capitalismo. Nós somos resistência. 
Essa reivindicação se deve "apenas" para termos o direito institucional de sermos reconhecidos, e nossos direitos de existir com dignidade minimamente garantidos. 
O direito de viver, sem sermos agredidas e agredidos por quem somos não virá assinado pelo Estado, não virá pela mão dos homens. Mas o MÍNIMO que podemos reivindicar de um Estado que SUPOSTAMENTE É LAICO, é que os interesses dos fundamentalistas religiosos não mais afetem nosso direito de existir.
Notoriamente, a aprovação massacrante desse projeto de lei ontem pelos deputados (que segue agora para o plenário da câmara), é um retrocesso, um absurdo que deve ser amplamente debatido, questionado e combatido. Isso como uma consequência de um senado conservador e fascista, como não se via desde a ditadura militar. Não é nenhuma surpresa muito grande que projetos assim seriam votados e aprovados

E acreditem: a direita está se organizando. A Igreja está junto. O papa pop que "perdoa mulheres que abortam", é influência e ativo nesta organização.
Vocês estão assinando mortes de pessoas. São "pró vida" de fetos, mas colaboram com a morte de mulheres todos os dias. São "pró vida" de fetos, mas depois de criança nascida, se for tutelada por pessoas do mesmo sexo, colaboram com a agressão e a morte desta crianças. 
Um argumento comumente usado na promoção da ideia de "família tradicional", é por supostamente visar "o interesse da criança". Fecham os olhos (de maneira bem conivente) para os abusos infantis, estupros e violências cometidas por homens heterossexuais que acontecem nas próprias casas de vocês, família comercial de margarina, mas colaboram com o assassinato dos nossos filhos e ainda fazem comparações absurdas de homossexualidade com zoofilia e pedofilia, como feita ontem na câmara, mais uma vez. Vocês não se importam com as crianças - aliás, essa "preocupação com o bem estar e direito das crianças" também é notoriamente seletiva, racista e misógina.

Vocês são um lixo.

Por Andressa Stefano

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Das especificidades de se descobrir e assumir lésbica para uma mãe

A heterossexualidade é um regime político na sociedade patriarcal (que é mais específico que o conceito de "heteronormatividade"), portanto, é um fato de que é extremamente difícil para qualquer mulher se assumir lésbica quando somos condicionadas e obrigadas a nos relacionar com homens. Além de todo o processo de descoberta da própria sexualidade, quando nos assumimos lesbianas, estamos negando o acesso dos homens sobre nós, e isso é uma afronta ao controle sexual e reprodutivo patriarcal. Para as mães, se assumir lésbica é ter sua lesbianidade questionada de maneira bem específica, já que somos "marcadas" pela heterossexualidade pela maternidade compulsória. Ela está marcada no nosso corpo, nas nossas entranhas, e as nossas crias são uma prova material disso. Não é dada a oportunidade legítima de nenhuma mulher exercer sua sexualidade que não seja para consumo masculino, para as mães, tampouco, já que mães não devem ter vida sexual ativa, só para servir à família, e de forma bem específica, ao patriarca. A maternidade é construída por vários mitos que servem para naturalizar nossa exploração sexual e reprodutiva, e ser mãe, corresponde à um papel social ligado especificamente à ambientes domésticos e a família nuclear. 

A lesbianidade, é uma afronta e uma resistência à esse papel. Ser mãe e ser lésbica é conviver diariamente com essa existência totalmente marginalizada, invisibilizada e ser vista como uma incoerência ambulante. As vivências das mães lésbicas não são homogêneas, mas se encontram de forma parecida em vários momentos. Muitas das mães biológicas tiveram relacionamentos com homens, muitos dos quais duradouros e também abusivos, marcados pela repressão da própria sexualidade, da pressão familiar para manter uma "família tradicional" depois de ter engravidado, já que a figura paterna é vista como de suma importância, mesmo que seja ausente e/ou violenta. A solidão de uma mulher mãe, também colabora para que seja difícil enfrentar sozinha à maternidade e a lesbofobia.
Mães solteiras conhecem de perto o sentimento de abandono, de ser preterida em relações sexuais e afetivas (nem heterossexuais, nem lesbianas). Somos fetichizadas durante a gravidez, durante a amamentação e durante toda a maternagem. Além da fetichização, a romantização, esperam que sejamos maternas e cuidadoras inclusive com quem nos relacionamentos afetiva e sexualmente. Além do medo de sofrer lesbofobia por nós mesmas, temos medo de como a lesbofobia pode afetar nossos filhos e filhas - e isso pode ser ainda mais doloroso. Quando se é mãe e lésbica o alvo é duplo, porque podem machucar facilmente também a criança. Recentemente, um casal de lésbicas foi morto junto com seu filho no RJ, e crianças que tem mães lésbicas são alvos de chacota e violências físicas e psicológicas. E as escolas e os meios sociais, não estão preparados para lidar com uma criança que tem uma mãe solteira, muito menos uma mãe lésbica. Uma forma de nos atingir é atingir nossas crias - e este mecanismo é bem conhecido pelas mães também. As conversas com nossas crias tem que ser constantes, e o cuidado tem que ser redobrado. Não temos que nos preocupar somente como a lesbofobia pode nos afetar, mas como pode afetar nossas crias, e protegê-las (e também prepará-las e fortalecê-las) até onde está ao nosso alcance. 

Diante de tudo isso, muitas mulheres mães que sentem atração sexual e afetiva somente por mulheres, se veem obrigadas a manter relacionamentos heterossexuais para não ficarem sozinhas, para dar uma "figura paterna" para a criança, proteger a cria da lesbofobia e acabam suprimindo a sua lesbianidade por pressão social e um condicionamento violento. Agora de forma mais pessoal, vejo um potencial sapatão em tantas mães, mas que ficam presas ao ex-abusador ou a outros caras, e vejo muito destes motivos que explicitei neste texto colaborando para isso. De forma alguma a culpa é delas, mas gostaria de propor uma reflexão mais profunda sobre isso em grupos de mães, e também em grupos de lésbicas. No mais, sintam-se abraçadas todas você, mulheres mães.

Por Andressa Stefano

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Por que decidi me afastar do movimento feminista por Marx Lopes

Estou me desligando por enquanto do movimento feminista virtual e presencial por fatores que, não envolvem apenas o pessoal, mas também o politico, mas ora, o pessoal não é politico afinal? Então, eu acho que antes de sair e bater a porta atrás de mim e de fato consolidar meu isolamento eu quero registrar algumas experiências que me fizeram tomar tal decisão.

Eu devo aqui antes dizer que eu leio muito, não teorias, mas a vivência de outras mulheres, me importo com elas e elas de fato fazem diferença na minha vida, eu reflito sobre o que escrevem, absorvo e tento colocar em prática aquilo que li, tentando assim fazer da minha militância o mais horizontal e transparente possível. Obviamente que cometi erros durante esses quase três anos de militância, mas sempre tentei ser o mais ética possível, sempre tentando não transformar minha militância em um clube fechado, onde minhas amigas têm razão e qualquer outra mulher, não. Isso nem faz muito minha linha de posicionamento, pelo contrário, as mulheres que me cercam e que são próximas sabem que minha posição sempre será a de apontar seus erros e apesar do acolhimento que ofereço sempre achar que devam enfrentar as consequências de seus atos, assim como enfrento as minhas próprias consequências quando erro.

O ponto que quero chegar é que o Movimento Feminista é grande, forte e ultrapassa a pouca experiência que tenho, ultrapassa os limites virtuais, mas é imaturo e deveras irresponsável e isso está explicito no modo de agir de suas militantes, nas quais eu mesma me incluo. Não há uma linha de ética traçada ou se há, ela é engolida por egos e likes, não existe consenso em como agir em dados momentos, assim, cada qual se guia por aquilo que acredita e passa por cima de outras mulheres. Há alguns dias eu tenho usado com pessoas próximas a expressão “devemos ser estratégicas” porque ser estratégica te faz racionalizar os momentos em que a frustração e raiva possam vir aparecer por quaisquer motivos. O movimento feminista tem sido engolido por passionalidade, tem sido pouco eficaz em alcançar mulheres reais e quando alcança, as afasta. Não são poucas as mulheres que eu pessoalmente admiro e que se afastaram do movimento, são mulheres estrategistas, mulheres reais que deveriam ser ouvidas e em vez disso, foram afastadas como se fossem uma ameaça ao movimento, mulheres que tem muito o que dizer e que, por mais que eu me sentisse incomodada por também ter o dedo na ferida, são mulheres que tem muito o que ensinar e com elas teríamos muito o que aprender.
Para além disso, eu vou colocar aqui também minhas experiências pessoais e minha visão, talvez algumas pessoas se sintam intimamente e pessoalmente incomodadas com meu texto, já peço desculpas desde já, mas para o que eu quero expressar é necessário que minha experiência seja colocada em pauta. Bom, como disse no inicio do texto eu já cometi erros e alguns erros foram graves, erros esses que fizeram com que mulheres se afastassem de mim e que assim permaneçam até hoje e embora isso me incomode porque eu consegui amadurecer, elas tem toda razão e direito de se preservarem de minha presença. Talvez o maior e mais grave de meus erros foi em certo momento em que permiti que minha frustração e raiva por uma situação passassem a influenciar também minha militância, fui extremamente passional e nesse momento pude comprovar o quanto era imatura e irresponsável. De lá para cá, mudei a forma de militar e de como me envolvia pessoal e emocionalmente com as mulheres que passaram a me cercar: tornei-me mais franca, apesar de ainda cuidadosa, tornei-me mais forte para expor situações e tornei-me alguém melhor, mais comedida e responsável, não apenas comigo mesma, mas também com as mulheres que me cercam. Pude trazer isso pra militância e passei em primeiro lugar a traçar limites, a estabelecer prioridades e estratégias, sem nunca desligar-me de alguns valores que aprendi com outras mulheres e os quais quero manter pro resto da vida. Mas assim como aprendi a lidar com algumas situações, ainda me perco em outras e foi exatamente isso que me trouxe um desgaste emocional grandioso.

Há algum tempo eu passei por uma situação que, talvez, para quem não estivesse perto de mim e não saiba o que eu estava passando por aquele período possa parecer drama e até mesmo um pouco de exagero, não me surpreenderia. O que se passou foi que fui exposta a uma situação em que me senti muito mal. Esse incomodo foi real pra mim, eu sofri (e ainda sofro) muito por aquela situação da qual eu tento desde sempre não me lembrar, mas que de alguma forma veio a tona novamente. Por nunca conseguir expressar o que me aconteceu porque algumas das pessoas com quem conversei não acham que minhas sensações seriam reais e reduziram aquilo a um simples mal entendido, me calei, e me calei também por respeito e temor das pessoas que poderiam e estariam envolvidas naquela situação. Eu nunca as procurei de fato para conversarmos sobre o que se passou, procurei apenas para esclarecer outros fatos, eu ainda não me sentia e nem me sinto preparada para lidar com isso, apesar de eu estar escrevendo sobre, pessoalmente, ainda não tenho forças para conseguir expressar o que senti naquele momento. Mas, porque eu estou dizendo isso? Porque aqui eu quero dizer que muitas feministas não levam o que algumas mulheres falam ou sentem tão seriamente, se calam ante a situações que são nocivas para algumas mulheres porque nestas situações muitas vezes estão envolvidas feministas que tem influência e que podem ser e são amigas pessoais umas das outras.

Então, eu gostaria, já finalizando esse texto (o qual estou chamando de suicídio politico e despedida do movimento) que vocês amadurecessem um pouco mais suas ideias sobre ética no movimento feminista, sobre passionalidade e passassem a traçar estratégias que possam ir ao encontro de todas as mulheres, que possam voltar atrás em suas opiniões e atos, analisa-los e se preciso for se posicionar de modo diferente quando houver possibilidade. Não coloquem suas amigas à frente quando se tratar de militância, cobrem postura quando necessário e sempre ouçam umas às outras, principalmente mulheres que já tem experiência e mais do que isso, vivência. Não depositem sua confiança 100% em outras mulheres, elas são passíveis de erro e mais do que isso, elas podem não ser quem vocês pensam que elas são. Mulheres também podem ferir e ser feridas, não passem por cima de seus limites para nada e não permitam que outras mulheres passem por cima. Tentem se manter fortes e tentem compreender as diferenças que suas vivências proporcionam, tentem não cair nas armadilhas de nossa socialização, desconstruam, antes de tudo, rivalidade, pensem na estética depois, não adianta desconstruir  estética quando ainda se mantém valores patriarcais. Deem voz a quem realmente deve ter voz: mulheres negras, periféricas, lésbicas, mães que são constantemente invisibilizadas dentro dos espaços feministas, que  parem de aplaudir ladainha de mulheres classe média alta e coloquem o dedo na ferida e se permitam sentir pra desconstruir. Aqui me desligo momentaneamente (ou não) do movimento feminista, mas continuo ao lado das mulheres que aprendi a amar e respeitar e permaneço aprendendo com tantas outras.

Marx.



terça-feira, 8 de setembro de 2015

Sobre apagamento de lésbicas



O assunto tá batido, mas vendo postagens em grupos de lésbicas (tanto em grupos virtuais, como presenciais), em sua maioria não feministas, sinto a necessidade de escrever novamente. Gostaria de nem sentir necessidade de escrever sobre isso, mas considero de suma importância para a nossa visibilidade e resistência enquanto lesbianas. Senta que lá vem textão (acho que poucas vão ler, mas vai que né):

A última pesquisa recente relacionada à sexualidade, mostra que mulheres estão cada vez menos se assumindo lésbicas. Acredito que seja também, por entenderem que é "apenas um rótulo" ou "se limitando" por se relacionarem apenas om mulheres (argumentos que são comumentes usados em espaços para mulheres lésbicas/bissexuais), pelas tentativas constantes de apagamento e marginalização patriarcais, com um apoio do liberalismo individualista colocado como revolucionário pela esquerda pós moderna - teoria queer e transativismo - que já se tornou a bíblia do mundo LGBT, onde a categoria análise sobre gênero, que considera gênero enquanto "auto identificação" é soberana e inquestionável. E as lésbicas, que ousam questionar essa teoria que corrobora com pedofilia, zoofilia, cultura de estupro e apagamento lesbiano, ou simplesmente ousam dizer que não são obrigadas e não querem se relacionar com mulheres trans por causa do falo, são acusadas de transfobia - que tem sido tratada como prioridade em espaços LGBT e também de espaços feministas - considero isso como uma forma de minar espaços auto gestionados de mulheres e de lésbicas em nome da "diversidade".
Algumas considerações sobre isso:

1) Mulheres não são produtos para serem "rotuladas". Lesbianidade não é um rótulo, é uma categoria política que precisa existir e ser nomeada para que possamos nomear nossas vivências, que são específicas, assim como nossas opressões (lesbofobia). Assim como a categoria mulher ainda existe porque precisamos nos nomear assim para visibilizarmos violências e vivências específicas que nos acometem. Mas nós existimos, resistimos e gritaremos que somos lesbianas, fanchas, caminhoneiras, sapatão. LÉS BI CAS.

2) Não existe limitação nenhuma em se relacionar apenas com mulheres. Essa ideia de que seria uma limitação, é derivada da heterossexualidade enquanto regime político. É notório que nossa lesbianidade, nosso sexo é visto como "limitador" pela sociedade falocêntrica e patriarcal porque não tem envolvimento de falo. O que seria de uma mulher sem um pinto, não é mesmo? (só para deixar evidente que é uma ironia, vai que, né).

3) Parece óbvio ter que dizer isso, mas: nenhuma mulher deve ser obrigada à nada e nem deve sexo à ninguém. Nenhuma mulher deve se relaciona com pessoas do sexo masculino caso não queira, mesmo que estas pessoas se "auto identifiquem" como mulheres. Nenhuma mulher deve ser coagida, ser acusada de transfobia, e "desconstruir preconceito contra falo" (como se isso fosse possível, já que a sociedade é falocêntrica, e o pênis é idolatrado e visto como a cura para as mulheres, inclusive pelos cientistas, pela psicanálise; diferentemente da vagina, que é vista como algo inferior, nojento, mal cheiroso) numa tentativa absurda de justificarem à coerção do sexo hetero para lésbicas em forma de "desconstrução de preconceitos".

4) Existem categorias de análise diferentes sobre gênero.

- Existe uma visão individualista, que entende gênero como algo passível de auto-identificação. Essa categoria de análise, é derivada de uma política liberalista, que entende que a subjetividade do indivíduo está acima de construções sociais, que são coletivas e não são escolhas - de fato, todo indivíduo é único e tem suas subjetividades, mas até nossas subjetividades são moldadas pelo meio em que vivemos.
Essa categoria de análise entende gênero enquanto uma "pluralidade" e algo que deve ser celebrado, reificado, e que cada indivíduo poderia escolher à qual gênero "se identifica", de acordo com a maneira que "se sente". Se uma pessoa foi designada homem ao nascimento, foi socializado como homem, mas "se sente" uma mulher, esse indivíduo é uma mulher (trans). Se uma pessoa foi designada como mulher ao nascimento, socializada como mulher, mas "se sente" um homem, é um homem (trans). Assim como acreditam ser possível que qualquer indivíduo que se identifica com nenhum gênero, ou com todos os gêneros, ou que flui entre os gêneros.
E isto seria um fato inquestionável, já que a auto-identificação é soberana.

- Existe uma outra categoria de análise, materialista, que entende gênero enquanto uma hierarquia, criado como ferramenta para naturalizar a exploração das mulheres. Essa categoria de análise entende que o gênero não é uma auto-identificação, mas uma imposição que serve aos interesses masculinos: crianças do sexo feminino, desde que que descobrem sua vagina, tem sua existência social definida por isso. Nascem e nos furam as orelhas, mutilam o clitóris, são criadas como inferiores, frágeis, e a feminilidade (outra ferramenta criada para interesse masculino para a manutenção do patriarcado) se mostra presente desde a tenra socialização, assim como a heterossexualidade enquanto regime político e a maternidade compulsória. Já a socialização masculina, é bem diferente do citado acima.
Tudo isso nos torna mulheres perante a sociedade, assim como é intrínseca a construção do que é "ser mulher" baseado no "ser homem", já que eles são os agentes, e nós, os objetos. Já que não existe o "ser mulher" sem um homem (mulheres lésbicas, especialmente as despidas de feminilidade, escutam com certa frequência homens as ameaçando de estupro corretivo para se "tornarem mulheres"). Um ponto bem importante desta categoria, é entender mulheres enquanto uma classe sexual - ou seja, temos algumas vivências semelhantes devido à nossa leitura social de mulheres, devido à nossa vagina.

Um ponto extremamente pessoal que quero colocar aqui, é que entendo a maternidade como o grau mais alto de exploração das mulheres apenas por serem mulheres, como forma de "cumprir seu papel social". É celebrada nas propagandas de dia das mães, falsamente recompensada pelo "amor incondicional" pelos filhos, mas é exploração, sofrimento, anulação para muitas mulheres (mesmo as que fazem questão de manter a figura de mãe feliz, perfeita e que não reclama de nada), e que ainda enfrentam o cargo da criação dos filhos sozinhas e são culpabilizadas pelo que quer que façam.
Por fim, essa análise não entende gênero enquanto um sentimento, ou algo passível de "auto identificação", mas uma ferramenta para naturalizar a exploração sexual, reprodutiva e laboral das mulheres, que deve ser abolida, e não reificada. É entender que nenhuma mulher escolheu ser mulher, porque isso seria dizer que nos identificamos com a nossa própria submissão e exploração.
Isso significa que, se não existir gênero, não existirão hierarquias entre os sexos. Homens e mulheres são diferentes, mas nossas diferenças biológicas não justificam a ritualização da nossa submissão, nem sermos tratadas como inferiores apenas por termos vagina.

*Obviamente, existem outros sistemas de exploração que andam concomitantes ao patriarcado, recortes de raça e classe são extremamente necessários nesta análise, perpassando pela socialização, mas aqui me dedicarei exclusivamente à esse ponto, até porque não tenho carga teórica o suficiente para isso e muito menos vivência.

5) Depois de entender estas duas categorias distintas sobre gênero, é de suma importância nos questionarmos: o que então é ser mulher? O que é ser lésbica?
O que é ser mulher? É a roupa que visto? É a saia, o vestido? É o salto alto, a maquiagem? Eu me sinto mulher? O que me faz "me sentir mulher"? Sou mulher porque me "sinto assim" ou porque me "tornaram mulher" porque nasci com uma vagina de acordo com a leitura social patriarcal?
Ser lésbica passa por apenas a auto-identificação enquanto lésbica, ou ter vivência enquanto lésbica? Qual é a história da comunidade lésbica? O que significa ser lésbica em uma sociedade falocêntrica e patriarcal? O que significa amar, se relacionar afetiva e sexualmente somente com mulheres? O que significa negar o acesso masculino aos nossos corpos em uma sociedade em que nosso corpo é público enquanto somos solteiras, e privado se somos casadas com homens - mas de toda forma, de domínio masculino ? Por que é necessário enxergar nossa lesbianidade enquanto política de resistência?

Ademais, não duvido que pessoas trans realmente "se sintam" do gênero oposto, porque só nos identificamos e sentimos com aquilo que nos é apresentado. Mas isso não quer dizer que não devamos questionar se essa categoria de análise é producente para a nossa classe sexual ou não como forma de libertação das mulheres do controle masculino.

6) É extremamente violento para lésbicas despidas de feminilidade serem colocadas como "homem trans". A feminilidade é uma ferramenta de manutenção patriarcal, é uma ferramenta para nos manter frágeis, submissas, delicadas, está à serviço da supremacia masculina e do capitalismo. A feminilidade deve sim, ser desconstruída, não apenas pelas lésbicas, mas por todas as mulheres. Isso não quer dizer que você está proibida de usar maquiagem ou se depilar, mas que é importante se questionar o porquê disso, qual é a origem desse ritual e para quê/ para quem ele é mantido. Nossos gostos pessoais também são construções sociais.
Lésbicas despidas de feminilidade, que resistem à feminilidade, são resistência, e não são homens automaticamente porque recusam a feminilidade. Essa lógica é bem patriarcal, e reificada em espaços LGBT, invadidos pelo transativismo. Reflitam sobre o quão é violento dizer para uma lésbica, que se relaciona exclusivamente com mulheres, despida de feminilidade, que ela é um homem trans por isso. Que a disforia que ela sente em relação ao seu corpo, não é fruto da misoginia patriarcal, e que é 'ok' a mutilação do seu próprio corpo "para se sentir bem". E que ao invés de desconstruirmos a misoginia e lesbofobia internalizada, devemos reificar cirurgias plásticas mutiladoras, o uso de hormônios que também beneficiam a indústria farmacêutica capitalista. E isso inclusive reifica a lógica da heterossexualidade, onde sempre tem que existir "um homem e uma mulher" numa relação. E que inclusive esses papéis sociais de "homem e de mulher" devem ser reificados em relações lésbicas (coisas como "ativa e passiva", "lady ou bofe" e políticas identitárias). Um homem trans que teve vivência lésbica, seria "homem hetero". Enquanto mulheres trans, que sempre viveram enquanto homens e que sempre se relacionaram com mulheres, são "lésbicas". O apagamento da lesbianidade é notório.

E isso vem sendo colocado de forma extremamente normalizada. Homens trans, em sua maioria que viveram a vida toda como lésbicas, são pessoas excluídas de espaços de lésbicas e bissexuais porque são "iguais homens cis" (deixando evidente que nem uso o conceito "cis" por entender culpabilizador, já que nem uma mulher escolheu ser mulher ou se sente mulher, nós somos obrigadas a sermos mulheres). Não são iguais. Não tiveram socialização masculina, não foram lidos enquanto homens desde a tenra infância, não são agentes da exploração masculina e da dominação dos homens sobre as mulheres.

- Mas o que tudo isso significa para as nossas vidas enquanto lésbicas, de fato? -

Qualquer pessoa tem o direito de se auto-identificar como quiser, porém, esse individualismo liberal está invadindo espaços coletivos, de auto organização e resistência, de maneira que lésbicas estão sendo coagidas à engolirem a teoria de identidade de gênero sem ao menos poderem questionar, por que são acusadas de transfobia. Que são acusadas de transfóbicas por não se relacionarem com pessoas do sexo masculino ou porque reivindicam a lesbianidade enquanto uma resistência ao pinto, portanto, não existiriam "mulheres trans lésbicas".

Fica nítido que o trabalho do patriarcado, aliado ao liberalismo, em nos apagar à todo custo está sendo cumprido com sucesso, apesar de grupos marginalizados que insistem em ser resistentes, que enxergam sua lesbianidade de maneira política, e também à todas as lésbicas que resistem, mesmo sem politização nenhuma sobre sua sexualidade - a existência enquanto lésbica já é uma própria resistência.
Nós, lésbicas, lesbianas, sapatas, fanchas, nos nomeamos assim e não deixaremos de existir. As políticas neoliberalistas, inclusive sobre a categoria de análise sobre gênero e sobre lesbianidade devem ser combatidas enquanto resistência.

Mana, você tem todo o direito de questionar teoria de identidade de gênero e tem todo direito de discordar. Se você é silenciada em qualquer espaço que seja ao fazer estes questionamentos, é porque tem alguma coisa errada. Estude, leia, converse com outras lésbicas, em outros meios, menos hostis à sua existência e a sua sexualidade. Você não está sozinha.
E você tem todo o direito do mundo de se recusar se relacionar sexualmente e afetivamente com mulheres trans sem ser acusada de transfobia.
Você tem todo o direito de reivindicar sua lesbianidade enquanto xoxota com xoxota, cola velcro. Tem todo o direito de retomar a história da comunidade lésbica, de lembrar que existimos e resistimos ao falocentrismo.
Um beijo pras sapatão.

Por Andressa Stefano