quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Sobre Monogamia e não monogamia: olhares de duas lésbicas sobre relações

Uma visão lésbica sobre monogamia

Os modelos de relacionamento monogâmicos e não monogâmicos são constantemente discutidos em espaços feministas, porém há uma falha enorme ao analisar ambos os conceitos de um ponto de vista lésbico. O apagamento de lésbicas e a nossa constante comparação a homens não é nenhuma novidade para nós, o intuito desse texto é dar a minha visão de mulher lésbica e radical sobre a monogamia entre mulheres lésbicas.


       Pra começar uma discussão sobre monogamia entre lésbicas o primeiro passo a ser dado é deixar a heteronormatividade e deixar de lado esse pensamento de que a monogamia lésbica é de alguma forma, comparável à monogamia entre um homem e uma mulher. O conceito de monogamia, o conceito radical, sequer se encaixa as relações de exclusividade entre mulheres. Monogamia é um modelo de relacionamento criado com o único objetivo de facilitar a exploração de mulheres em um relacionamento sexual. A mulher, tratada como propriedade, pertencendo a um homem que a possui e a explora. A monogamia no conceito heterossexual é essencialmente uma relação de poder de cunho sexual homem-mulher em que uma mulher é pertencente a um homem que tem toda a liberdade social do patriarcado para explorar essa mulher de diversas formas.


        Tratar relacionamentos exclusivos entre mulheres da mesma forma que é tratada a monogamia heterossexual é o mesmo que afirmar que existe “um homem da relação” entre duas mulheres e nos mergulhar em heteronormatividade, pra variar. Relacionamentos lésbicos não são nem de longe horizontais, isso é uma falácia muito repetida e que tem que acabar. O grupo “mulher” não é um grupo homogêneo e existem várias formas para que um relacionamento entre mulheres seja desigual e potencialmente abusivo, sim. Mas ao dar à exclusividade entre mulheres o mesmo peso da monogamia heterossexual estamos criando um poder de dominação baseado em sexo que não existe entre mulheres. A relação de poder homem-mulher é algo que socialmente jamais vai se aplicar em um relacionamento lésbico.
    Existe, além dessa problemática, a nossa boa e velha socialização feminina. Mulheres são socializadas pra se sentirem um lixo, pra se sentirem ameaçadas e pra serem inseguras por outras mulheres. O discurso não monogâmico muitas vezes ignora essa variável e tende a demonizar mulheres que são “ciumentas” ou “inseguras” demais, quando na verdade é apenas a nossa socialização falando. Isso é cruel com essas mulheres, e isso tem que acabar. Há vários motivos dentro dessa socialização (e fora dela, também) que levam uma mulher a não se sentir segura em relacionamentos não monogâmicos, e isso não deve ser ridicularizado nem ignorado. Mulheres lésbicas já ultrapassam uma barreira profunda, dolorosa e enraizada, a heterossexualidade compulsória, para se relacionarem. Nós passamos um processo doloroso interno e externo, psicológico e social pra sequer começarmos a nos relacionar entre si. Nós resistimos a uma doutrinação profunda que tenta nos esmagar a partir do momento em que saímos dela, e dizer que de alguma forma relacionamentos exclusivos entre mulheres contribuem ou colaboram ao patriarcado não é apenas ofensivo, como doloroso à essas mulheres. A exclusividade entre mulheres, por si só, não é opressiva e esse não é um modelo menos correto de relacionamento do que outros. Aliás, sequer existe um modelo correto de relacionamento, estão todos passíveis a serem abusivos. Sendo abertos ou fechados.
     Qualquer relacionamento entre mulheres pode vir com uma carga grande de reproduções heteronormativas, o patriarcado é heteronormativo, isso é normal e passível de desconstruções. Reduzir um modelo de relacionamento, por si só, à heteronormatividade, ou a ser opressivo é uma ideia simplista e liberal. Os problemas nos relacionamentos entre mulheres e os motivos que os tornam propensos a serem abusivos vão muito além de um modelo de relacionamento, e reduzir todo o problema a isso, é ignorar todos os reais motivos que causam um relacionamento abusivo e heteronormativo entre mulheres. É simplista dizer que um relacionamento exclusivo entre mulheres não está passível a desconstruções de heteronormatividade. Da mesma forma que relacionamentos não monogâmicos podem ser abusivos e heteronormativos, relacionamentos monogâmicos também podem ser. E podem não ser.
    Mulheres, necessariamente, trazem uma grande carga emocional para um relacionamento. Isso é inerente à nossa socialização que nos expõe rotineiramente a traumas e abusos. O fato de duas mulheres, com essa carga que a vivência como mulher nos expõe (umas mais, outras menos), não se sentirem seguras com relacionamentos não monogâmicos não deve ser algo ridicularizado ou desqualificado. Não existe nenhuma hierarquia de poder sexual entre duas mulheres e nossos relacionamentos exclusivos são tão passíveis de desconstrução quanto qualquer outro.
   Eu, como qualquer outra lésbica não politizada, comecei um relacionamento monogâmico repleto de reproduções heternormativas e coisas problemáticas, que com muito trabalho e com muito apoio entre as partes foi possível a desconstrução de muitas coisas. O modelo de relacionamento não influenciou minha capacidade de desconstrução de algo como, o ciúme. O ciúme entre mulheres não pode e nem deve ser comparado ao ciúme de um homem para uma mulher. O ciúme vindo de uma mulher é nada além de um reflexo direto da nossa socialização que tem muito sucesso fazer com que mulheres se sintam um lixo e, consequentemente, se tornem inseguras sobre si mesmas. O ciúme masculino é nada além de um senso de propriedade sobre uma mulher. Novamente, requer deixarmos de lado a comparação entre lésbica e homem. Nada lésbico é comparável a nada masculino. Mulheres lésbicas possam reproduzir misoginia da mesma forma que qualquer outra mulher, e não devemos nos penalizar sobre isso somente por sermos lésbicas. A misoginia que nós reproduzimos nos nossos relacionamentos (que não é nem de longe exclusividade de um ou outro modelo de relacionamento) pode, sim, ser desconstruída. E um relacionamento exclusivo entre duas mulheres pode, sim, ter limites e respeito aos espaços individuais e às nossas liberdades.
    Manter um relacionamento não é simples, requer cuidado, dedicação à sua parceira. Requer toda uma carga emocional. Quando esse é um relacionamento lésbico tudo é ainda mais atenuado. São duas mulheres que são rechaçadas socialmente, apagadas de espaços e levam um dia a dia passível de violências lesbofóbicas pelo simples fato de existirem e de estarem juntas. A não monogamia requer desconstruções prévias a serem feitas antes de se entrar nesse modelo de relacionamento, e essas desconstruções nem sempre são possíveis dentro da realidade de muitas mulheres, e nós não devemos ser desmerecidas por isso, devemos ser respeitadas. Não vejo a problemática em duas mulheres com cargas emocionais pesadas se sentirem seguras apenas uma com a outra, se dedicarem a cuidarem uma da outra dentro de uma sociedade patriarcal e lesbofóbica. Os relacionamentos lésbicos, essencialmente, vão contra o patriarcado, vão contra a nossa doutrinação de heterossexualidade compulsória e vão contra a dominação masculina dos nossos corpos. A existência lésbica, independente de politizada ou não, é uma existência política. A união, o afeto e o companheirismo entre mulheres desestabilizam e afrontam ao patriarcado. O amor lésbico é revolucionário por si só de diversas formas. Um modelo de relacionamento não é uma sentença para heteronormatividade e nem pra que ela não possa ser desconstruída. Há de se ouvir as lésbicas exclusivas, pararem de nos taxar de colaboracionistas ou de menos radicais por tomarmos a única decisão de nos preservar de algo que vai além dos nossos limites de desconstrução. Portando, a heteronormatividade entre lésbicas pode (e deve) ser desconstruída. Independente de modelos de relacionamentos.


Uma crítica a não monogamia na prática

            Bom, eu tenho discutido muito sobre não monogamia e a forma como se tem discursado e praticado esse tipo de relação. Eu mantive uma relação não monogâmica por cerca de um ano e me tornei adepta e entusiasta do discurso, porém, tenho algumas críticas a fazer.

            Para que eu fale sobre não monogamia eu não preciso necessariamente desqualificar a monogamia porque estou falando de relações lésbicas. Não vejo como uma relação lésbica monogâmica possa ser enquadrada como enquadro relações heterossexuais, não há hierarquia de poder e dominação sexual nas relações lésbicas, pode haver outros recortes como idade, classe social e etnia, pode haver reprodução de heteronormatividade (quais são as nossas bases para relações? O que aprendemos e vemos desde crianças se não a representação de uma figura masculina e outra feminina nas relações? Ou seja, quem domina e quem é dominado), porém, a reprodução de heteronormatividade não ocorre apenas em relações monogâmicas como também ocorre em relações não monogâmicas.

            Então vou dar um breve resumo daquilo que li sobre não monogamia e amor livre. Bom, o amor livre apareceu no século XIX, idealizado por anarquistas para que suas relações fugissem daquilo que o Estado católico-burguês exigia: um núcleo familiar, onde a mulher era propriedade do homem e onde se visava à manutenção de poder. Bom, os anarquistas adotaram o amor livre como forma de desestabilizar aquilo que o Estado esperava de um núcleo homem-mulher. Bom, a mulher aqui era vista como propriedade e, na teoria, a mulher passaria a deixar de ser propriedade de um homem e teria por direito a igualdade de relações afetivas e sexuais de seu parceiro. Mas devo lembrar sempre que, falando de relações heterossexuais, homens nunca foram monogâmicos, sempre tiveram direito e acesso a corpos femininos, o patriarcado nunca lhes tirou esse direito, o amor livre seria apenas a prática desses homens sendo colocada em teoria e passada a mulheres. (Vou apenas ressaltar que qualquer relação heterossexual serve apenas aos homens uma vez que a heterossexualidade é regime político de dominação de homens sobre mulheres, mas esse não é o foco deste texto).

            Mas e aí, e as relações entre lésbicas?
            Bom, ao longo da minha curta caminhada enquanto lésbica feminista já me deparei com muitas outras lésbicas não monogâmicas. Desenvolvi minha própria forma de encarar, teorizar e praticar a não monogamia, fora dos padrões heteronormativos. Eu digo sempre que a não monogamia consiste em criar laços: afetivos, românticos e sexuais. Coloco primeiramente a afetividade como arma de maior potência. Nós somos ensinadas a nos odiar, a ver como inimigas nossas iguais e nossos laços afetivos são sempre colocados em dúvida pelo patriarcado com o discurso de que mulheres não são capazes de criar laços entre si. Não é verdade, o que ocorre é que mulheres quando criam laços entre si se tornam fortes e assim rompem com o opressor. Depois coloco a romantização através dos laços afetivos, isso pode vir a acontecer ou não, depende das mulheres envolvidas. O que ocorre é que podemos sim nos envolver romanticamente com outras mulheres (e quando digo romanticamente não estou fazendo ligação ao amor romântico que o patriarcado nos impõe, mas sim uma relação além da afetividade) e por ultimo eu cito as relações sexuais que não vejo como primordiais, mas sei que temos a necessidade de nos ligar também sexualmente a outras mulheres. O que diferencia a monogamia da não monogamia, além de outras nuances, é o fato de não haver exclusividade em relação aos laços românticos e sexuais, para além disso, sinto que a não monogamia me possibilita um estreitamento de laços afetivos muito maior e livre de qualquer impedimento de ser vivenciado de forma romântica ou não.

            Aqui entra minha primeira e ferrenha critica aos discursos pró não monogamia que ando vendo por aí, estamos tratando a não monogamia como se fosse apenas consumo de corpos por sexo. Esse discurso pró sexo livre, pró liberdade além de liberal é um discurso de risco para saúde de mulheres lésbicas. Liberal porque não há nada de revolucionário no consumo de corpos e apenas isso. O patriarcado espera que nós apenas nos relacionemos sexualmente porque o afeto entre mulheres é um risco ao sistema heteronormativo, então não há revolução em algo que o sistema já espera de nós. Não estou dizendo para que paremos de nos relacionar sexualmente, mas para que problematizemos o discurso do sexo livre e do porque nos incomoda tanto nos ligarmos a outras mulheres através da afetividade além do sexo. Estamos reproduzindo discurso heteronormativo e patriarcal. Um risco à saúde porque não temos acesso a métodos de proteção para relações sexuais. Nós não existimos para o Estado, o Estado não disponibiliza para nós métodos eficazes de proteção, então, ter várias parceiras sexuais é também se colocar e coloca-las em risco. Precisamos nos responsabilizar em relação à nossa saúde sexual e de nossas companheiras.

Eu queria lembrar que nós trazemos conosco uma grande carga de marcas e traumas emocionais, como qualquer outra mulher. Também levamos conosco inseguranças e lições sobre relacionamentos que o patriarcado inseriu a cada uma de nós ao longo de nossas vidas, como vencemos isso e como desconstruímos cabe a cada uma de nós, individualmente e em conjunto, mas é necessário que saibamos que nós não estamos livres de certas reproduções de sentimentos e ações, é hipocrisia afirmar que a não monogamia é a solução para todos os problemas relacionados à questão de relacionamentos entre mulheres, porque não é. Aqui, cabe minha segunda critica: muitas mulheres lésbicas adeptas da não monogamia acham que esse tipo de relação é a salvação em relação a reproduções de certos padrões de ações e sentimentos, como o ciúme. Não é. Vou focar no ciúme, como exemplo. O ciúme entre mulheres nada mais é do que insegurança, porque nos foi ensinado que nós não temos o domínio de nossas emoções, de que somos fracas e de que para manter a outra ao lado é necessário que ela esteja satisfeita, do contrário, ela poderá ir embora optando por outra mulher que supra aquilo que não suprimos. Ora, se a não monogamia se baseia em manter relações afetivas, românticas e sexuais com outras mulheres, como podemos fazê-lo ainda alimentando essa insegurança? Por experiência pessoal eu respondo: não podemos. É preciso que desconstruamos primeiro nossas inseguranças, as analisemos e percebamos suas origens antes que decidamos optar pela não monogamia, quando eu percebi o que me causava certas inseguranças eu demorei muito tempo para desconstrui-las e envolver mais mulheres nisso causou rompimentos e perdas. Obviamente que estamos sempre em processo de desconstrução, mas é preciso responsabilidade e maturidade para saber se já existe segurança para então desenvolver uma relação não monogâmica que vá além do sexo, como já falei acima.

É preciso que estejamos em constantes discussões e debates sobre relações não monogâmicas para que possamos ir além do que discursos de sexo livre e de salvação. A não monogamia consiste em relações, entre duas ou mais mulheres e é necessário que tenhamos sempre em vista que nossas relações devem quebrar e ir além das barreiras já impostas pelo patriarcado, que nossos discursos precisam ir além dos discursos heteronormativos e que nossas relações, monogâmicas ou não, são a chave para a revolução contra o patriarcado. Sem compreendermos a importância e a eficácia de nossas relações para além do campo individual e pessoal não sairemos do lugar e permaneceremos achando o máximo uma série de ações reformistas. Lésbicas são as mulheres que conseguem fazer com que o “pessoal é politico” seja oficializado através de suas relações, incluir nessas relações discursos heteronormativos, liberais e reformistas faz com que nossa luta seja retardada, precisamos ir além do conforto.

Por: Iolanda Brasil e Marx Lopes.

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