segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Algumas violências lesbofóbicas pelas quais passei

A primeira ideia do que eu poderia ser me surgiu aos 10 anos de idade. Foi estranho, confesso, por vir de uma família conservadora, naquela época ainda mais conservadora que agora. Eu não havia tido contato (nem mesmo por televisão) com mulheres como eu. Não tinha noção que mulheres poderiam amar mulheres, mas já havia tido contato com objetificação da lesbianidade. Durante os abusos que sofri por parte do patriarca da família, ele fazia questão de mostrar em vídeos relações entre mulheres. Me enojava (além de tudo que já estava acontecendo comigo) saber que aquele escroto usava da exploração daquelas mulheres para seu prazer e usava da exploração do amor entre mulheres, mesmo que na época eu não soubesse definir o que sentia. Conforme o tempo passava eu aprendia que eu sofreria muito por ser quem sou, fui aprendendo a me defender. Por mais que eu tentasse resistir, era pesado demais pra uma criança. Na adolescência tive a oportunidade de ter duas vidas. Fui estudar em outra cidade, comecei uma vida naquela cidade e me escondia sob a imagem de heterossexual no bairro onde morava. O que não durou muito tempo, todo o bairro sabia quem eu era, mas escondiam, faziam de tudo pra se enganar e não permitir com que eu me assumisse. Na outra cidade, entretanto, eu não precisava me esconder. Eu era livre, eu era eu. Eu me permitia ser sapatão.

 E mesmo com meus longos cabelos e lápis preto nos olhos, ninguém se enganava, bastava um olhar pra saberem quem eu era, o que eu sou. Na mesma medida em que me libertava na outra cidade, criava mecanismos para me defender das violências que me aguardavam onde morava. Mecanismos esses que incluíam me feminilizar. Doía, doía demais. Me feminilizar não era algo que eu havia aprendido a gostar, era uma caverna cheia de estilhaços que caíam sobre meu corpo e me machucavam todos os dias. Uma caverna que eu me via obrigada a entrar para sobreviver mesmo morrendo um pouquinho a cada dia. Aos 17 anos, já havendo deixado o Ensino Médio e a cidade onde era livre, agora trabalhando no Centro da grande cidade onde morava, tão longe de meu bairro suburbano quanto a outra cidade, continuava a seguir minha liberdade longe da família. Até que um homem, com seus 40 anos, me comprou. Comprou minha liberdade, meu sexo, minha vida durante dois anos. Eu que durante aquele tempo havia me apaixonado e me envolvido com algumas mulheres, não tinha forças pra me libertar daquela situação. A depressão, adquirida na infância devido aos primeiros abusos, piorava cada vez mais. Estupros e mais estupros. Cabeça enfiada no travesseiro durante os atos, ouvindo “sei que você é sapatão, assume logo”. Só não sei se foram os piores anos da minha vida devido aos meus primeiros abusos.

Após tanta violência, consegui ajuda psicológica. Já nas primeiras consultas, pude perceber que eu precisava me aceitar por sobrevivência. Eu precisava me libertar antes que aquela prisão me matasse internamente. Eu estava a beira do precipício. Depois de um longo processo de cuidado interno, houve a catarse. Me libertei de quem me violentava. Não permiti mais chegar perto do que causava dor. E gritei ao mundo inteiro minha sapatonice. Gritei, inclusive, a quem se recusava a ouvir. Grito e continuarei gritando, para que mulheres que passem pelo que passei busquem força em minha luta pra também se libertar. Grito para evitar dor às minhas. Grito para fortalecer as que se sentem desabando. Grito para incomodar todos os que fizeram e fazem com que o fato de eu ser quem sou ainda me machuque. Grito para que meu amor ecoe no resto do mundo e se torne salvação a todas as mulheres que amam mulheres e não se veem capazes de serem felizes. 

K.SCUM

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