E mesmo com meus longos cabelos e lápis preto nos olhos, ninguém se enganava, bastava um olhar pra saberem quem eu era, o que eu sou. Na mesma medida em que me libertava na outra cidade, criava mecanismos para me defender das violências que me aguardavam onde morava. Mecanismos esses que incluíam me feminilizar. Doía, doía demais. Me feminilizar não era algo que eu havia aprendido a gostar, era uma caverna cheia de estilhaços que caíam sobre meu corpo e me machucavam todos os dias. Uma caverna que eu me via obrigada a entrar para sobreviver mesmo morrendo um pouquinho a cada dia. Aos 17 anos, já havendo deixado o Ensino Médio e a cidade onde era livre, agora trabalhando no Centro da grande cidade onde morava, tão longe de meu bairro suburbano quanto a outra cidade, continuava a seguir minha liberdade longe da família. Até que um homem, com seus 40 anos, me comprou. Comprou minha liberdade, meu sexo, minha vida durante dois anos. Eu que durante aquele tempo havia me apaixonado e me envolvido com algumas mulheres, não tinha forças pra me libertar daquela situação. A depressão, adquirida na infância devido aos primeiros abusos, piorava cada vez mais. Estupros e mais estupros. Cabeça enfiada no travesseiro durante os atos, ouvindo “sei que você é sapatão, assume logo”. Só não sei se foram os piores anos da minha vida devido aos meus primeiros abusos.
Após tanta violência, consegui ajuda psicológica. Já nas primeiras consultas, pude perceber que eu precisava me aceitar por sobrevivência. Eu precisava me libertar antes que aquela prisão me matasse internamente. Eu estava a beira do precipício. Depois de um longo processo de cuidado interno, houve a catarse. Me libertei de quem me violentava. Não permiti mais chegar perto do que causava dor. E gritei ao mundo inteiro minha sapatonice. Gritei, inclusive, a quem se recusava a ouvir. Grito e continuarei gritando, para que mulheres que passem pelo que passei busquem força em minha luta pra também se libertar. Grito para evitar dor às minhas. Grito para fortalecer as que se sentem desabando. Grito para incomodar todos os que fizeram e fazem com que o fato de eu ser quem sou ainda me machuque. Grito para que meu amor ecoe no resto do mundo e se torne salvação a todas as mulheres que amam mulheres e não se veem capazes de serem felizes.
K.SCUM
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